I – O art. 7.º, n.º 1, do CPP estabelece que “O processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa”, nisto consistindo o princípio da suficiência do processo penal, do qual decorre que o tribunal penal é competente para decidir todas as questões, penais e não penais, essenciais para conhecer da existência de um crime, dos seus agentes e da respetiva responsabilidade criminal.
II – A derrogação desta competência, como resulta da interpretação conjugada das várias normas do referido art. 7.º do CPP e é pacífico na doutrina e na jurisprudência, tem natureza excecional e só pode ter lugar relativamente a questões de natureza não penal essenciais àquele fim do processo penal, mediante apreciação casuística e discricionária do juiz da causa penal, salvo situações de “devolução obrigatória do conhecimento de questões prejudiciais”, como sucede no âmbito dos crimes fiscais e tributários, nos termos dos arts. 42.º, n.os 2 e 4, e 47.º, n.º 1, do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 15-06, que não ocorre no caso em apreço, uma vez que o crime cuja existência constitui o objeto do processo é o de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º do DL n.º 15/93, de 22-02, cuja verificação e responsabilidade pelo seu cometimento do arguido recorrente e dos seus coautores não está essencialmente dependente do conhecimento de qualquer questão não penal e muito menos indispensável para esse efeito.
III – O princípio basilar da territorialidade que conforma a aplicação da lei penal estadual no espaço, em Portugal e na generalidade dos Estados soberanos, além do alargamento pelo designado “critério do Pavilhão”, relativamente a crimes cometidos a bordo de navios ou de aeronaves, pode sofrer modelações decorrentes de princípios acessórios ou complementares, designadamente, no que aqui releva, do “princípio da universalidade, da competência universal ou do direito universal”.
IV – Este princípio legitima a aplicação da lei penal portuguesa pelo tribunal português material e territorialmente competente no lugar onde se encontra o agente do crime, independentemente da geografia onde foi cometido e da sua nacionalidade ou da vítima, quando estejam em causa crimes lesivos de relevantes “bens jurídicos de carácter supranacional”, como tal generalizadamente reconhecidos e punidos pelas leis internas de cada país ou pelo direito convencional internacional e princípios gerais de direito internacional.
V – Não se trata de conferir a cada Estado o poder de perseguir e punir qualquer crime previsto na sua legislação interna, sob pena de surgimento de constantes diferendos e conflitos de soberania entre os vários Estados, mas de permitir essa perseguição e punição quando esteja em causa algum daqueles bens jurídicos e a provável impunidade da sua violação sem recurso a esse princípio da universalidade, da competência universal ou do direito universal, expressamente refletido no art. 5.º do CP português, em particular no seu n.º 2, conjugado com instrumentos de direito internacional relacionados a que Portugal se encontre vinculado.
VI – Entre vários exemplos de criminalidade internacional perigosa e violadora daqueles bens jurídicos, surge o do tráfico internacional de estupefacientes, cujo combate a nível mundial se mostra consagrado na Convenção das Nações Unidas de 1988, conjugada com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982 e, a nível bilateral, com o Tratado entre Portugal e o Reino de Espanha para a Repressão do Tráfico de Droga por Mar, referenciados no transcrito trecho do acórdão recorrido.
VII – Deste modo, mesmo para aqueles que não reconhecem “a emergência de um costume internacional, seja geral ou regional, legitimador de exercício de jurisdição universal”, a verdade é que o ordenamento jurídico português dispõe de um complexo normativo disperso por diferentes diplomas legais, que, conjugados entre si e com aqueles instrumentos de direito internacional, permite concluir, como no acórdão recorrido, pela legitimidade e licitude da intervenção da Marinha e da Força Aérea e pela aplicação da lei penal portuguesa pelos tribunais portugueses ao caso em apreço, sem que nele se verifique qualquer invalidade da prova recolhida pela Polícia Marítima com o seu auxílio e intervenção coadjuvante.
VIII – Nem dessa intervenção da Força Aérea e da Marinha resultou qualquer violação ou simples ofensa das pertinentes normas constitucionais e legais, nomeadamente dos arts. 32.º, n.º 8, da CRP e 126.º do CPP, uma vez que a mesma decorreu a coberto de pertinentes normas legais e convencionais aplicáveis ao caso em apreço, sem utilização de qualquer método proibido de prova, mas apenas dos meios coercivos e de segurança indispensáveis à concretização da intervenção obrigatória e necessária à cessação da situação de ilicitude criminal detetada em flagrante delito e à salvaguarda dos respetivos meios de prova e à incriminação dos seus agentes.
IX – Mesmo para aqueles que consideram o auto de notícia como documento autêntico ou autenticado, a respetiva força probatória restringe-se aos factos nele expressos sobre o que foi observado e que consubstanciam a denúncia de crime público ou semipúblico, se o ofendido também estiver presente e manifestar a vontade de procedimento criminal, a comunicar ao MP, mas sem relevo probatório quanto à efetiva prática do crime e quanto à culpabilidade do ou dos seus agentes, ficando, nessa parte, sujeito à livre apreciação do juiz, nos termos do art. 127.º do CPP.
X – Por outro lado, apesar de alguma controvérsia que ainda persiste a propósito das consequências da inobservância plena dos requisitos estabelecidos no art. 243.º do CPP e sem embargo da possibilidade da arguição e eventual declaração da respetiva falsidade, nos termos do art. 170.º do CPP, que aqui não se coloca, considerando estar apenas em causa a falta de assinatura dos elementos da Polícia Marítima que intervieram na abordagem, apresamento e reboque da embarcação para o porto de Faro, juntamente com os arguidos e haveres por eles detidos, tem-se por certo que aquela eventual inobservância não integra qualquer nulidade, mas antes uma mera irregularidade a arguir nos termos do art. 123.º, n.º 1, do CPP, sob pena de sanação, tendo em conta o princípio da legalidade estabelecido no art. 118.º do mesmo Código.
XI – No caso em apreço não ocorreu qualquer quebra da cadeia de custódia dos meios de prova recolhidos e valorados, tendo sido preservada a sua “identidade e autenticidade ab initio ad finem de todo o iter processualis”, pelo que a convicção do tribunal neles suportada se perfila insuscetível de censura, porque baseada na prova documental, pericial e pessoal constante dos autos e neles validamente recolhida, produzida e/ou reproduzida, examinada e valorada, com integral respeito pelos princípios constitucionais do due process and fair trial consagrados nos arts. 20.º e 32.º da CRP e sem evidência de qualquer desvio ou erro flagrante na sua apreciação, por ilógico ou contrário às disposições legais aplicáveis ou às regras da experiência comum e do normal acontecer.
XII – Os factos provados mostram-se bastantes para a condenação dos arguidos como coautores do crime de tráfico de estupefacientes que lhes vinha imputado, sem que o texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência, evidencie que ficaram por indagar factos necessários a essa imputação, assim afastando a verificação do aludido vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
XIII – Com efeito, sendo o crime em causa passível de cometimento mediante qualquer das múltiplas modalidades de ação típicas previstas no art. 21.º do DL n.º 15/93, de 22-01, a circunstância de os três deterem e transportarem na embarcação em que foram intercetados pelas autoridades policiais portuguesas, em ação conjunta e mediante acordo entre todos, forçoso é concluir que cada um deles dominava a situação de facto, pelo menos parcialmente, estando à sua disposição e na sua disponibilidade executar ou abortar o empreendimento em que se envolveram, que pressupunha o transporte e a posterior trasladação ou descarga, em pleno oceano ou em porto seguro, com conhecimento das caraterísticas do produto estupefaciente detido e transportado e do seu destino, sendo a intervenção de todos e de cada um deles indispensável à realização desse propósito, assim se preenchendo todos os requisitos de que depende a verificação da coautoria, sem prejuízo, naturalmente, da individualização da culpa, como pressuposto e inultrapassável limite da punição.
XIV – É que, como a jurisprudência constante e uniforme do STJ tem vindo a afirmar, a coautoria não exige outros requisitos que não os enunciados e considerados no acórdão recorrido, nomeadamente a existência de um plano prévio, conjunto e expresso e a exata definição dos contornos da comparticipação, assim como a sua igualização, antes admitindo que o acordo conjunto seja sucessivo e tácito e que a intervenção parcelar de cada um esteja no domínio do próprio e seja essencial à realização do propósito comum, como aqui sucedeu, considerando os factos provados.
XV – Considerando as finalidades das penas, em particular das elevadas exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, a pena de 6 anos de prisão aplicada ao arguido, é justa, adequada e fixada de harmonia com os princípios da necessidade e da proporcionalidade, sem ultrapassar a medida da sua culpa e, apesar de benévola, ainda sintonizada com a bitola do STJ para situações semelhantes.
XVI – Nenhuma inconstitucionalidade normativa é passível de conhecimento in casu, seja por indefinição da concreta norma, princípio ou parâmetro constitucional violado, seja porque, efetivamente, além de desnecessária, a questionada interpretação feita no acórdão recorrido do art. 4.º do referido Tratado Luso-Espanhol não ofende o estatuído no art. 5.º da CRP.