fundo

Contraordenação eleitoral por tratamento jornalístico discriminatório

02 Jan 2018

I  –   A decisão da CNE fundamenta-se expressamente no relatório de instrução, e projeto de decisão, que consta em anexo à respectiva acta.

II –  Quanto à remissão feita na decisão recorrida para a proposta elaborada por um instrutor, entidade que continua legalmente encarregada de elaborar a instrução e que esteve em contacto directo com a defesa, pois que presidiu à audição do arguido e à inquirição das testemunhas por aquele apresentadas ou constantes da acusação, entende-se que os preceitos do processo penal deverão ser aplicados “devidamente adaptados”, o que não pode ter outro sentido senão o de considerar que é diferente a natureza da decisão porque é diversa a estrutura organizatória e funcional da Administração.

III – Por um lado, é preciso ter em conta que a estrutura do processo de contraordenação na sua fase administrativa não é uma estrutura acusatória baseada em duas magistraturas autónomas e independentes, ao contrário do que sucede com os processos judiciais. Na fase administrativa o processo obedece a uma estrutura inquisitória, tanto mais que quem instrui está na dependência hierárquica de quem decide.

IV – Por outro lado, a função jurisdicional do juiz não é rigorosamente a mesma da autoridade administrativa quando decide aplicar a coima. Se mais diferenças não houvesse, aí está a lei a dispor que a decisão administrativa é revogável até ao envio dos autos ao tribunal, e quanto a nós poderá mesmo ser reformada em caso de invalidade relativa, ao passo que a função do juiz se esgota com a prolação da sentença, salvaguardando-se apenas a correcção de erros materiais.

V –  Acresce que se não se põe em dúvida que se aplicam no processo contraordenacional não só os princípios constitucionais de garantia processual penal dos arguidos, além de diversos outros inseridos no respectivo CPP, não é menos verdade que alguns haverá que não terão ali aplicação. É o caso do princípio da imediação e do seu corolário da oralidade ou do princípio de que toda a prova é feita em julgamento. Ao contrário do que se passa com o juiz, o decisor administrativo não esteve em contacto directo com o arguido nem assistiu à audiência e defesa. A realidade do que ali se passou tem, por isso, de lhe ser transmitida por quem ali esteve: o instrutor.

VI – Por último, não se pode nunca esquecer que a decisão, se bem que integrando um “procedimento especial”, aparentado com o processo administrativo de tipo sancionador, mas dele se distinguindo, é fatalmente uma decisão administrativa, porque tomada por autoridade administrativa, embora a lei-quadro lhe atribua características especiais, entre as quais avulta a não admissão de recurso hierárquico em busca da definitividade vertical, uma vez que a decisão da autoridade administrativa (Delegado) se torna definitiva transcorrido o prazo de impugnação judicial.

VII – Como decisão administrativa que é, hão-de aplicar-se neste procedimento especial “as normas que não envolvam diminuição das garantias dos particulares”, conforme determina o próprio CPA a partir da reforma de 96.

VIII – Face às características e natureza do procedimento por contraordenação não se vê que sejam diminuídas as garantias de defesa pelo facto de ser o instrutor a elaborar a proposta de decisão de onde conste o designado “relatório” e a “fundamentação”, ficando o decisor incumbido de proferir a decisão em sentido próprio, isto é, a determinar a coima, eventualmente as sanções acessórias que ao caso couberem, remetendo, quanto à fundamentação de facto e de direito, quanto aos elementos de agravação ou de atenuação da culpa e às normas legais aplicáveis, para a proposta do instrutor.

IX – Esta posição vai ao encontro do disposto no n.º 1 do art. 125.º do CPA. Acresce que se trata de solução que encontra eco numa corrente que se vem formando por virtude da decantada morosidade da justiça e que já teve um primeiro afloramento, ao nível judicial, nas alterações do CPP entradas em vigor no início de 2001, designadamente no que se refere aos acórdãos absolutórios mencionados no art. 400.º, n.º 1, al. f).

X –  No fundo, obrigar a decisão a repetir literalmente considerações já expressas noutra peça processual é uma imposição vazia de sentido, que apenas tem por resultado o desperdício de tempo.

XI – Em Portugal, o direito de informação encontra consagração constitucional no art. 37.º da CRP, integrando três níveis: o direito «de informar», o direito «de se informar», e o direito «de ser informado». A conjugação desse artigo com o art. 38.º, que incide concretamente sobre a liberdade de imprensa e meios de comunicação social, imprime a ideia de protecção quer da actividade individual de comunicação das notícias quer a “informação”, entendida como a acção de comunicar as notícias através dos meios de comunicação social. A liberdade de informação, como base da formação da opinião democrática, é um elemento essencial da liberdade de expressão. A liberdade de informação não é o direito de informar os outros, mas o direito de a si mesmo se informar, sendo um pressuposto da liberdade de expressão e da livre formação da opinião pública e não uma consequência; um Estado democrático não funciona sem uma opinião pública livre e informada, o mais objectivamente possível, sobre os factos.

XII – A não referência expressa, na CRP (art. 37.°, n.º 1), aos meios através dos quais opera o direito de informação deverá, por força do art. 16.°, n.º 2, ser colmatada pelo recurso à DUDH, que, no seu art. 19.°, consagra o direito de procurar, receber e difundir informações, sem consideração de fronteiras, «por qualquer meio de expressão»; tal significa que tanto a expressão do pensamento como a informação podem ser veículadas por qualquer meio; significa também não estar nominalmente previsto um regime especial para os meios de comunicação de massa; finalmente, em termos puramente normativos, resulta dificultada a possibilidade de aderir à posição que distingue a crónica individual da liberdade de informação levada a cabo pelos meios de comunicação.

XIII – É do conceito de informação – no que respeita ao lado activo do direito de informação – que decorrerá, em certa medida, o estatuto de alguns meios de comunicação.

XIV – O direito de informar é um direito de estrutura complexa, capaz de conter em si faculdades que o qualificam simultaneamente como direito, liberdade e até garantia institucionais.

XV – O conteúdo do direito de informação não pode desentender-se da definição do respectivo objecto. Se olharmos em especial ao direito de informar, poderemos verificar que os pressupostos e requisitos que integram o conceito de informação acabam por funcionar como margens delimitadoras do seu conteúdo.

XVI – Os limites do direito de informar são, por consequência, mais numerosos e mais extensos que os limites da liberdade de expressão. Assim, além dos limites assinalados a esta – que se aplicam, por maioria de razão, ao direito de informar -, podem indicar-se as seguintes linhas orientadoras:

a) A delimitação do direito de informar tem de resultar igualmente de uma interpretação sistemática da CRP, podendo relevar, consoante os vários tipos de mensagem (política, religiosa, filosófica, publicitária, etc.), porém, não só os demais direitos e liberdades fundamentais, como a tutela de certos princípios e valores constitucionais inerentes à liberdade política e à forma democrática do governo;

b) Tal delimitação só pode ocorrer no quadro da CRP (art. 18.º, n.º 2) e deverá corresponder essencialmente à modulação do alcance dos direitos fundamentais concorrentes; em particular, além dos direitos que relevam da inviolabilidade pessoal, e que não podem ser lesados no seu conteúdo essencial, devem ser aqui chamadas outras limitações como as relativas à utilização de informação sobre pessoas e famílias (art. 26.º, n.º 2, da CRP), aos direitos dos arguidos (art. 32.º da CRP) ou à protecção constitucionalmente amparada do segredo;

c) Tal como para a liberdade de expressão, em princípio, a CRP (salvo os casos já apontados) não permite à lei que venha estabelecer limitações – no sentido que habitualmente lhe vem sendo dado de restrições – decorrentes de exigências da moral, da ordem pública ou do mal) e, por outra, os que correspondem à delimitação do âmbito de protecção ou conteúdo do direito.

XVII – É liminar, por um lado, a importância do direito a informar como pilar de uma sociedade democrática, mas também a circunstância de que tal direito não é uma entidade absoluta e está limitado pela observância de regras de igual ou superior dimensão. Um dos princípios fundamentais do estatuto constitucional do sector público da comunicação social é o pluralismo ideológico. Cada órgão de comunicação social deve apresentar uma programação ou conteúdo ideologicamente «contrabalançado» e expressivo das diversas correntes de opinião.

XVIII – O pluralismo traduz-se em dar expressão às «diversas correntes de opinião». Não especifica a CRP que tipo de opinião é que está em causa, mas há-de naturalmente tratar-se das correntes de opinião de natureza política, ideológica, religiosa, e, em geral, cultural. O princípio pluralista exige, designadamente: a proibição de silenciamento de qualquer corrente de opinião relevante na colectividade; a obrigação de atribuir a cada um mínimo adequado de expressão; a proibição de dar expressão a cada uma de forma desproporcionadamente grande ou pequena.

XIX – É nesta compreensão da relatividade do direito de informar que se deve partir para a destrinça entre a noticia que se inscreve num inalienável exercício de um direito, e que não está cerceada por qualquer limitação legal, obedecendo única e simplesmente ao critério da importância jornalística e a noticia que, em período de campanha eleitoral, toca ou, por alguma forma, convoca algo mais do que a mera notícia, entrando no tratamento das candidaturas em presença.

XX – A recorrente, no caso em apreço, orientou-se naquele primeiro caminho aduzindo duas ordens de razões que se consubstanciam na existência de um critério editorial tendo em conta a representação que cada um dos partidos tinha no executivo municipal sendo natural que a cobertura jornalística tivesse sido feita na mesma proporção, e, ainda, a circunstância de a eleição à Presidência da Câmara Municipal X revestir a particularidade de o ainda Presidente da Câmara se ter candidatado num movimento independente e o seu vice Presidente ser o candidato do Partido A.

XXI – Contudo, a peça jornalística em causa estendeu-se às afirmações produzidas por um candidato de um terceiro partido, que nada tinha a ver com a invocada situação que, na perspectiva da arguida, justificaria o tratamento jurídico diferenciado. A partir do momento em que é dada oportunidade a um candidato às eleições locais da cidade de X de se pronunciar sobre as mesmas, também os restantes candidatos devem ter igual oportunidade não existindo qualquer justificação para um tratamento discriminatório, tanto mais que esta era a única intervenção da recorrente relativa às eleições na mesma autarquia. Estamos pois em condições de afirmar que aquela peça noticiosa, respeitando, não só, mas também, à campanha eleitoral não deu um tratamento igual a todas as candidaturas.

XXII – Dispõe o art. 49.º da LOAL que os órgãos de comunicação social que façam a cobertura da campanha eleitoral devem dar um tratamento jornalístico não discriminatório às diversas candidaturas. Por seu turno, o art. 212.º do mesmo diploma pune a empresa proprietária de publicação informativa que não proceder às comunicações relativas a campanha eleitoral previstas naquela lei ou que não der tratamento igualitário às diversas candidaturas com coima de 200 000$00 a 2 000 000$00.

XXIII – Nos termos do DL 85-D/75, considera-se matéria relativa à campanha, as notícias, reportagens, a informação sobre as bases programáticas das candidaturas, as matérias de opinião, análise política ou de criação jornalística, a publicidade comercial de realizações, entre outros. Às notícias ou reportagens de factos ou acontecimentos de idêntica importância deve corresponder um relevo jornalístico semelhante. A parte noticiosa ou informativa não pode incluir comentários ou juízos de valor, não estando contudo proibida a inserção de matéria de opinião, cujo espaço ocupado não pode exceder o que é dedicado à parte noticiosa e de reportagem e com um mesmo tratamento jornalístico.

XXIV – Os princípios gerais de direito eleitoral consagrados na CRP, nomeadamente os prescritos na al. b) do n.º 3 do art. 113.º da LEOAL, visam a igualdade de tratamento de candidaturas e oportunidade de esclarecimento público.

XXV – Tratando-se, como se trata no caso vertente, de uma invocação feita da liberdade de expressão e criação dos jornalistas, a mesma não tem um carácter absoluto uma vez que tem de ser conjugada, com o dever de igualdade de tratamento das candidaturas aos órgãos de poder local. A LEOAL estabelece regras de adequação de outros direitos, liberdades e garantias ao especial tempo de propaganda eleitoral, em nome exactamente de um outro direito fundamental em democracia e igualmente com assento constitucional: a liberdade de escolha esclarecida do eleitor alicerce, da soberania popular que funda o Estado de direito democrático, que somos (art. 2.º da CRP).

XXVI – Ao jornalista assiste a liberdade de adoptar os critérios de exercício da sua profissão e de tratamento da notícia, com a salvaguarda de que não crie, nomeadamente no período eleitoral, uma situação de discriminação de candidaturas concorrente a um órgão de poder local. A actividade dos órgãos de comunicação social, que façam a cobertura da campanha eleitoral, deve, pois, ser norteada por critérios que cumpram os requisitos de igualdade entre todas as forças concorrentes às eleições; por preocupações de equilíbrio e abrangência, não podem adoptar condutas que conduzam à omissão de qualquer uma das candidaturas presentes.

XXVII – No caso dos autos, face aos seguintes factos demonstrados:

– no concelho de X concorreram aos dois órgãos municipais os seguintes partidos e coligações: A, B, C, D e o grupo de cidadãos eleitores E;

– apresentou candidatura apenas à Câmara Municipal o partido F;

– a recorrente transmitiu uma reportagem num dos seus noticiários, de 08-10-2009, em que apenas fez referência a três das candidaturas formalizadas à eleição da Câmara Municipal de X, tendo sido entrevistados os principais candidatos daquelas forças políticas;

– na reportagem da recorrente assim transmitida não foram feitas quaisquer referências às restantes candidaturas;

– a reportagem foi emitida durante o período de campanha eleitoral, o qual se iniciou em 29-09-2009;

– no período de campanha eleitoral (entre 29-09 e 09-10-2009) não se registaram quaisquer outras reportagens nos serviços noticiosos da recorrente relativas às eleições autárquicas dos órgão do município de X;

– o critério editorial adoptado pela recorrente para a cobertura das campanhas no âmbito das eleições autárquicas de 2009, nela se incluindo a referente aos órgãos municipais de X, teve em conta a representação que cada um dos partidos políticos detinha no executivo municipal;

entende-se que se encontram perfectibilizados os elementos fácticos relativos ao elemento material da infracção imputada.

XXVIII – A prova do elemento subjectivo do tipo, criminal ou contraordenacional, é complexa e, consequentemente, os tribunais para o afirmar têm que recorrer a juízos de inferência a partir de dados externos qualificados. Na verdade, os elementos subjetivos localizados no intelecto e consciência humana assumem-se como noções psicológicas que se furtam a uma percepção directa, ou apreciação imediata, por qualquer pessoa que não o próprio.

XXIX – É aqui que a prova indiciária assume uma especial importância para a acreditação desses elementos; tornando-se numa ferramenta necessária e única, na ausência de outros materiais comprobatórios que possam coadjuvar nesta tarefa. O conteúdo do pensamento só pode ser avaliado por indução ou por inferência, usando o juiz dados objectivos existentes no processo para afirmar até que ponto chegou o conhecimento do agente e quais eram suas verdadeiras intenções.

XXX – Consequentemente, será a partir do comportamento externo do sujeito e das circunstâncias em que surgiu o facto que o tribunal estará em condições de inferir os elementos subjectivos ou, por outras palavras, determinar qual foi a intenção e o grau de conhecimento que, sobre as suas acções, teve a pessoa acusada da prática de uma infracção. Importa aqui a inferência operada na base dos elementos objectivos (indícios) decorrentes do seu comportamento e das características do facto.

XXXI – No caso concreto, encontramo-nos perante uma das mais importantes estações de televisão que opera em Portugal e para a qual não é desconhecida toda a problemática relacionada com a campanha eleitoral, incluindo as questões jurídicas suscitadas pela mesma. Igualmente é exacto que ao dar espaço de promoção eleitoral a um candidato no âmbito de uma notícia mais abrangente relativa a outros dois candidatos a arguida não estava a tratar de forma igualitária todas as candidaturas pois que não tiveram projecção televisiva as restantes candidaturas. De tais elementos objectivos pode-se inferir a existência do conhecimento de um tratamento desigual em relação a algo que não o devia ser.

XXXII – O dolo existente não se pode ajuizar como portador de uma forte carga de censura e as circunstâncias da contraordenação também se situam numa zona pouco densa em termos de consequências ou em termos de ilicitude contraordenacional. Sendo certo que não se justifica o apelo à mera admoestação, está suficientemente fundamentado a aplicação de uma coima situada no limite mínimo da moldura contraordenacional.

 

Texto integral: Bases de Dados Jurídicas

 

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