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Intervenção Conferência Internacional Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

23 Jun 2022

 

As minhas primeiras palavras são para agradecer ao Senhor Professor Doutor Barbas Homem o convite que me formulou para estar aqui hoje nesta Conferência da Sociedade Europeia para a História do Direito Comparado.

 

Permita-me, Senhor Professor, que na pessoa de V.ª Excelência, saúde todos os ilustres Conferencistas, bem como o corpo docente e os alunos da prestigiadíssima Escola de Direito da Universidade de Lisboa.

 

Foi-me proposto que nesta comunicação abordasse dois temas:

A Profissão de Juiz e o Papel do Supremo Tribunal de Justiça.

Falar sobre a profissão de juiz é tema quase inesgotável.

Na verdade, são muitos os ângulos sob os quais se pode fazer a abordagem.

Tentarei circunscrever-me aos aspetos mais atuais da profissão, com um ou outro apontamento histórico.

A função de julgar, pela importância social que representa, sempre foi objeto de muita atenção e curiosidade.

Curiosidade que tem crescido à medida que aumenta a visibilidade da função jurisdicional, como resultado do maior escrutínio por parte da opinião pública.

Todos os dias os meios de comunicação social divulgam as novidades relacionadas, sobretudo, com processos criminais e relatam o desenvolvimento dos casos judiciais mais mediáticos.

Esta maior exposição coloca pressão no funcionamento dos tribunais e na atividade dos juízes.

Dessa maior exposição resultam vantagens e desvantagens.

As vantagens traduzem-se na circunstância de ficarem a descoberto as fragilidades do sistema judicial e os entraves a uma justiça mais pronta e eficaz.

As desvantagens consistem na potenciação de formas de condicionamento da atuação jurisdicional, eventualmente em benefício de interesses alojados em instâncias que dominam os meios de divulgação noticiosa ou interferem na sua ação.

É, todavia, importante que não se perca a essência do problema, isto é, que se relembre o papel que cabe aos tribunais.

Nos termos do artigo 202º da CRP os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, incumbindo-lhes assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.

E, segundo o artigo 203º, os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.

 

O que vai ao encontro do artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e ao artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, comandos de onde decorre que toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida.

 

A independência dos tribunais consiste, basicamente, na possibilidade de as contendas judiciais se decidirem com liberdade e imparcialidade

 

Ora, não há independência dos tribunais se os juízes, titulares desses órgãos de soberania, também não forem independentes.

 

Não existe nenhuma sociedade verdadeiramente democrática se a magistratura judicial não for independente: a independência dos juízes é, portanto, a garantia da efetividade das normas protetoras dos direitos fundamentais.

 

Essa independência manifesta-se na vertente externa e na vertente interna.

 

Na primeira, o significado da independência é diretamente político, na medida em que decorre do princípio básico da separação de poderes no Estado de Direito democrático.

 

Por isso, na definição de Garapon a independência externa consiste na liberdade de que usufrui globalmente a magistratura relativamente a outros órgãos políticos.

 

Nos Estados de Direito democráticos a independência externa é assegurada por normas constitucionais em que se estabelecem as necessárias garantias orgânicas de não interferência na ação judicativa.

 

Na extensão desta vertente da independência, os juízes devem também estar a coberto de quaisquer influências ou pressões por parte de outros poderes de facto, como partidos políticos, grupos económicos, lóbis, órgãos de comunicação social, etc.

 

A independência interna, isto é, a independência face ao próprio sistema em que o juiz se integra, sendo mais complexa, concretiza-se na confluência de vários caminhos.

 

A autorregulação do poder judicial cabe, como é sabido, ao Conselho Superior da Magistratura. Como órgão de controlo interno desse poder, tem por função garantir a gestão e disciplina dos juízes. Deve fazê-lo, porém, de forma transparente e isenta, nomeadamente quando usa os mecanismos de recrutamento, avaliação do mérito e progressão na carreira, bem como quando atua no âmbito da responsabilidade e do procedimento disciplinar.

 

Devo dizer, a este respeito, que a equilibrada composição do Conselho Superior da Magistratura, tendendo a equiparar o número de vogais juízes, eleitos pelos seus pares, com o número de vogais não juízes, designados pelo Presidente da República e pelo Parlamento, permite uma atuação democrática e transparente do órgão, ficando assim asseguradas as condições para que a independência interna dos juízes não seja posta em causa.

 

A inamovibilidade e a irresponsabilidade dos juízes, consagradas no artigo 216º da Constituição, constituem igualmente garantias tradicionalmente associadas a este vetor da independência.

 

Sendo a independência, externa e interna, condição essencial para a imparcialidade do juiz, esta só se completa com a observância de um conjunto de garantias processuais de que são exemplo os incidentes de escusa, recusa e impedimento do juiz, a exigência de fundamentação da decisão, o cumprimento do princípio do contraditório, enfim, o tratamento igualitário das partes no processo.

 

A independência do juiz existe para garantir a sua imparcialidade e esta só é plenamente alcançável e percecionada pela comunidade mediante a observância de um conjunto de outras componentes de natureza estatutária, ética e deontológica que assegurem a imparcialidade do juiz face aos interesses em litígio.

 

O cumprimento escrupuloso dos deveres estatutários, de que assume particular relevo o dever de reserva, e o afastamento de comportamentos que do ponto de vista ético ou moral se afastem do sentimento dominante na sociedade é um desafio cada vez mais exigente considerando os sedutores apelos da moderna vida social.

 

É crucial para a perceção da imparcialidade do juiz que este modere a sua atuação social em resultado das restrições ao pleno exercício dos direitos fundamentais que lhe são estatutariamente impostas.

 

O juiz não deve envolver-se em disputas opinativas nas redes sociais; deve abster-se de comentar decisões judiciais e de participar em atividades políticas ou administrativas que impliquem subordinação a outros órgãos de soberania ou o estabelecimento de relações de confiança política; não deve intervir por qualquer forma na vida dos organismos desportivos; não deve integrar associações ou organizações que exijam aos aderentes a prestação de promessas de fidelidade ou que, pelo seu secretismo, não assegurem a plena

transparência sobre a participação dos associados.

 

Algumas destas recomendações constam, aliás, do Compromisso Ético dos Juízes Portugueses elaborado em outubro de 2008, que constitui um importante guia ético-                  -deontológico para todos os magistrados judiciais, e que serviu como pano de fundo para a “Carta de Porto Alegre”, assinada em 2018, onde se estabeleceram os princípios éticos dos juízes dos países de língua oficial portuguesa.

 

A imparcialidade foi, desde sempre, um valor intrínseco à atividade judicativa.

 

Conta-nos Andrés Ibañez que, na Idade Média, nalgumas localidades italianas, procuravam-se juízes estrangeiros como forma de evitar interferências locais nas questões a decidir.

 

De igual modo, alguns tribunais chegaram a exigir que os juízes emitissem as suas sentenças antes das refeições para evitar que os seus critérios de julgamento pudessem ser condicionados pelos humores da digestão.

 

Tudo o que puder toldar a capacidade de decidir livremente, de perturbar o processo de formação da decisão deve ser expurgado.

 

Evidentemente que isto não significa que se exija ao juiz para ‘sair de si’, isto é, para que, ao decidir, anule a sua pessoa e apague as circunstâncias da sua vida. Não é isso. O que se lhe pede é que não deixe que a sua forma de estar e pensar a vida e o mundo, a sua ideologia, as suas convicções morais ou religiosas se sobreponham à lei e adulterem o processo decisório, sob pena de deslegitimação da sua atuação.

 

Estaremos todos de acordo se disser que ser juiz nos dias de hoje é muito mais complexo e difícil do que algumas décadas atrás.

 

O juiz do século XXI tem de saber gerir enormes caudais de informação e, paradoxalmente, tem de procurar compreender o que se passa numa sociedade em que as grandes massas se preocupam cada vez menos com a aquisição do conhecimento e da cultura e se ocupam cada vez mais com a informação instantânea e o entretenimento fugaz; o juiz de hoje tem de estar capacitado para o uso massivo de ferramentas informáticas e de meios tecnológicos avançados; tem de estar preparado para lidar com processos de maior complexidade e de saber resistir à pressão dos meios de comunicação social.

 

Tudo isto, acrescentado ao que já acima disse sobre a necessidade de moderação dos comportamentos sociais e a limitação do exercício de alguns direitos fundamentais, concorre para uma menor afluência de candidatos ao acesso à profissão de juiz.

 

Nem por isso se podem aligeirar as exigências formativas.

 

É fundamental que, a par do esforço de uma formação que atribua competências para um exercício funcional conforme,  se multipliquem iniciativas e formas de captação de novos magistrados para a nobre função de julgar.

 

Excelências:

 

Cumprindo o plano de intervenção traçado, darei agora brevíssima notícia sobre o papel do Supremo Tribunal de Justiça no judiciário português.

 

O Supremo Tribunal ocupa o topo da hierarquia dos tribunais judiciais portugueses.

 

É composto por 60 juízes conselheiros, repartidos por 7 secções: quatro secções cíveis, duas criminais e uma laboral.

 

Existe ainda a Secção do Contencioso à qual incumbe decidir as ações administrativas de impugnação das deliberações do Conselho Superior da Magistratura. Esta secção é presidida pelo Vice-Presidente mais antigo e dela fazem parte sete conselheiros, um de cada secção.

 

Em linhas muito gerais pode dizer-se que o Supremo aprecia recursos interpostos das decisões proferidas pelos Tribunais da Relação e, em regra, decide apenas questões de direito.

 

As decisões são colegiais, podendo ser proferidas decisões singulares em determinadas circunstâncias.

 

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça não é fonte formal de direito e a sua jurisprudência uniformizadora não tem força vinculativa, nem interna nem externa.

 

Como critério geral, o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência pode ter lugar quando o Supremo profira acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

 

O julgamento é feito pelo Pleno das respetivas secções e a decisão publicada no Diário da República.

 

Esta atividade de uniformização de jurisprudência é muito importante para a segurança jurídica e extremamente útil para quem diariamente de dedica ao trabalho forense.

 

Duvido, no entanto, que seja suficiente para evitar o fenómeno de volatilidade jurisprudencial que agora se tem tornado mais patente. A disparidade decisória em casos idênticos gera incompreensão e insegurança nos destinatários do sistema ao mesmo tempo que prejudica o nível de confiança dos cidadãos na Justiça.

 

Apesar de o nosso ordenamento jurídico assentar no modelo da civil law, não sei se seria oportuno refletir-se sobre  a possibilidade de se instituir um sistema equivalente ao sistema de precedentes usado na common law, como forma de  incrementar a função nomofilácica do Supremo Tribunal.

 

 

Ilustres Conferencistas

Minhas Senhoras e Meus Senhores

 

Antes de terminar, quero deixar aqui bem sublinhada uma preocupação.

 

Ao cabo de 75 anos de saúde, paz e relativo progresso, a Europa confronta-se com os restos de uma pandemia e o início de uma guerra a leste.

 

No início de 2020, a doença por Covid 19 espalhou-se pelo planeta, ignorando fronteiras e gerando angústia e sofrimento nas populações.

 

Até hoje, só na Europa, já se contabilizaram mais 2 milhões de mortes por Covid.

 

Quando a ciência e os sistemas de saúde dos vários países pareciam estar a debelar a situação e as economias davam algum sinal de recuperação, surge nova tragédia: a invasão da Ucrânia pela Rússia, iniciada em 24 de fevereiro deste ano.

 

As ondas de choque deste trágico acontecimento estão a começar a chegar a vários pontos do globo. A crise energética, a fome, a inflação, enfim, tudo o que uma guerra provoca, está a abalar a sociedade e as economias da Europa e do Mundo.

 

Se em relação à pandemia pouco ou nada se podia fazer para a prevenir, já em relação à guerra, os países da União Europeia só podem queixar-se de si próprios, da sua inação, da sua ingenuidade, da falta de visão estratégica.

 

Descansaram à sombra de uma confortável prosperidade, acreditando que nada nem ninguém poderia importunar o sossego dos dias de abundância.

 

Permitiram que se deslocalizassem indústrias de setores cruciais de atividade, que se abrissem de par em par as portas dos mercados de capitais, que se criasse um sistema de importação massiva de fontes de energia da Rússia.

 

De dependência em dependência, a União Europeia foi-se tornando presa fácil.

 

Hoje temos aí as consequências, que todos vamos pagar, uns mais do que outros. Para os pobres, a fatura será sempre maior e a sobrevivência mais difícil.

 

O descontentamento das populações vai crescer, a instabilidade social, política e económica vai afetar toda o espaço europeu.

 

Estão criadas as condições para a emergência de tendências nacionalistas e autocráticas, que aliás já se fazem sentir de algum tempo para cá, num progressivo e perigoso movimento em direção ao ocidente da Europa.

 

A forma mais eficaz para que essas tendências se implantem é através do controlo das instâncias judiciais pelo poder político, como já aconteceu noutros períodos históricos de má memória.

 

Observam-se, em alguns países, reformas legislativas de organização judiciária e modelos mais ou menos musculados de pressão sobre a atuação de magistrados, designadamente através da criação de câmaras ou secções disciplinares com forte pendor político.

 

A situação é de tal modo alarmante que a Comissão Europeia tem aberto procedimentos ao abrigo do artigo 7º do Tratado em relação a alguns países por desrespeito ao Estado de Direito.

 

Situação também denunciada pela Comissão de Veneza, no âmbito do Conselho da Europa.

 

Como alguém disse, é preciso estar muito atento e atuante no presente para se prevenirem problemas futuros.

 

A Europa da União tem de ser firme.

 

O Estado de Direito democrático, consagrado do artigo 2º do Tratado, é um dos valores fundadores da União Europeia que deve ser defendido com todas as forças.

 

Não há Estado de Direito democrático sem tribunais e juízes independentes, que julguem apenas de acordo com a lei.

 

A independência do poder judicial é a maior garantia da liberdade.

 

Sejamos livres!

 

Lisboa, 23 de junho de 2022

Henrique Araújo

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