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Intervenção do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça no 28º Congresso da FIDE

24 Mai 2018

 

  1. Agradeço, muito reconhecido, à organização do Congresso, muito particularmente ao Juiz Cruz Vilaça, o privilégio de participar nesta sessão.

 

Por mim, e em representação dos juízes portugueses, quero dizer-vos da imensa satisfação da vossa presença e agradecer o benefício da vossa reflexão, que constituirá sempre referência que marca os caminhos que caminhamos em conjunto e em convergência da realização de objectivos comuns.

 

  1. O 28º Congresso da FIDE vai ser, todos temos a certeza, a continuidade dos espaços abertos para actualização de perspectivas sobre as matérias mais complexas, que estão no centro da evolução do direito da União Europeia e dos desafios do futuro que temos o dever de enfrentar.

Todos o sabemos: os próximos tempos vão ser de enormes desafios, com riscos que ameaçam a União.

Juízes, académicos e advogados participam neste exercício do mais elevado prestígio, num tempo que nos foi dado viver de uma – mais uma – grande encruzilhada europeia: o tema geral do Congresso é Europa at the crossroads, que exige rasgo, capacidade e génio nas escolhas complexas, regresso às culturas fundadoras e a graça da acção iluminada por uma visão estratégica do tempo longo contra as contingências sem futuro do tempo breve.

A protecção e o respeito pelos valores consagrados dos direitos humanos constituem o fundamento básico e o quadro de referência da União e da integração europeia.

A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade da pessoa humana, no Estado de direito, no respeito pelos direitos do Homem, na liberdade, democracia e igualdade – é a injunção, mais que o programa, do artigo 2º do TUE.

A garantia do respeito dos valores essenciais condensados no princípio do Estado de direito será, em boa parte, ou no essencial só pode ser, obra da Justiça.

A Justiça guarda a integridade dos valores fundadores e faz a passagem da proclamação para a efectividade dos princípios.

Deve dispor, para tanto, das necessárias competências no cumprimento desta missão, no alfa e ómega dos valores constitutivos do Estado de direito e do respeito da rule of law.

É sempre bom recordar que a construção europeia, em momentos determinantes para a afirmação dos grandes princípios constitutivos, foi uma obra pretoriana – no primado, na aplicabilidade directa e no efeito directo.

 

  1. Mas quando o sentido da construção europeia parece esmorecer está sempre próximo, como causa e consequência ou consequência e causa, o enfraquecimento dos valores constitutivos do Estado de direito.

Estão aí acções, faces e evidências deste enfraquecimento – no campo normativo, nas formas de neo-organização ou no recuo do conteúdo e do objecto da judicial review.

No plano normativo, podemos salientar a escassez da discussão democrática dos processos de produção e formação de normas na União e a exasperação reguladora, susceptível de afectar a razão de proporcionalidade, com o consequente afastamento dos cidadãos.

Nas formas de neo-organização, a multiplicação de Agências sectoriais – Administração dentro da Administração, com poderes materialmente de jurisdição, pode criar uma outra separação de poderes, com escassez de controlos democráticos e judiciais.

No espaço institucional das novas regulações o recuo do princípio do Estado de direito acontece em consequência do encurtamento dos espaços de intervenção judicial com a criação de zonas livres de juiz – ou em expressão crua, com a expulsão do juiz.

O judicial defict das novas funções reguladoras, e até normativas, das Agências neo-institucionais, com a consequente desconsideração da extensão da judicial review, introduz uma descontinuidade nos controlos que não poderá passar ao lado da intervenção jurisdicional.

 

  1. No nível nacional, a regressão intolerável dos valores do Estado de direito a que assistimos em alguns espaços da União vem acompanhada da insuficiência de meios de resposta, deixando as instituições sem capacidade de reacção da União na defesa dos Tratados.

A escolha dos caminhos na incertitude desta encruzilhada passa também – diria passa muito – por aqui.

É, hoje, largamente aceite que algumas das mais relevantes decisões em décadas de integração europeia foram tomadas por Supremos Tribunais e por Tribunais Constitucionais nacionais.

As instituições judiciais – os tribunais nacionais, especialmente os tribunais supremos e o TJUE – em permanente diálogo, de dupla direcção para ser verdadeiramente diálogo, vão continuar a procurar o ponto de encontro e de partilha numa posição inter pares no exercício das respectivas competências.

Os tribunais, europeu e nacionais, têm pela frente desafios que, em conjunto, vão superar.

A densificação permanente dos princípios, a ponderação e a proporção no activismo que preserve os equilíbrios, que permita a compreensão mútua e o reconhecimento através da partilha e não da hierarquia, contribuirão, certamente, para continuar a colocar a intervenção judicial no centro da integração.

O diálogo efectivo e substancial de jurisprudências, construídas no princípio da margem de apreciação, a confiança, o rigor da interpretação do acto claro, a consideração dialógica sobre a natureza puramente interna das questões, ou a prevenção da intervenção ultra vires, permitirão, com certeza, superar melhor os desafios da participação segura no processo de integração.

A cooperação efectiva dos tribunais nacionais no uso razoável e equilibrado dos limites do dever de reenvio prejudicial e a aproximação às jurisprudências e às culturas judiciais nacionais são, também, factores que fazem participar melhor nesta construção.

Mas permitam-me como juiz de um Supremo Tribunal nacional, que, pelos Tratados, está na primeira linha do sistema jurisdicional da União – o juiz nacional é o primeiro juiz do direito da União – manifestar a opinião, construída na experiência, de que a proporcionalidade entre culturas jurídicas aconselharia uma maior presença nas instâncias europeias de juízes com passado de exercício judicial consistente nos tribunais nacionais.

 

  1. Partilho esta minha singela reflexão que identifica sinais de fragilidade do Estado de direito, não apenas nos focos de perturbação dos populismos, da crise das representações e das mediações políticas da pós-democracia, mas também pelo afastamento silencioso da jurisdição em matérias das mais relevantes.

De novo, a integração europeia coloca os tribunais no lugar central.

O Presidente Lenaerts disse, em Janeiro, em Estrasburgo, que a grande narrativa da integração europeia coloca, hoje, no centro os actores judiciais.

O sistema europeu de protecção tem na Carta dos Direitos Fundamentais uma componente essencial da rule of law no interior da União e com a CEDH um controlo externo das obrigações impostas aos Estados por compromissos internacionais.

A interacção, nos limites do campo de aplicação da Carta, permitirá certamente, no mais simples – ou mais complexo – a protecção do núcleo dos valores fundamentais do Estado de direito.

O Tribunal de Justiça e os tribunais nacionais são os garantes do rule of law e dos direitos fundamentais no espaço – em todo o espaço da União

Os tribunais portugueses – que têm sido avançados e pioneiros na construção e na integração europeias e na aceitação aberta do princípio do reconhecimento mútuo – estão preparados para contribuir, em conjunto com as jurisdições da Europa, para a superação dos desafios deste tempo de incertezas.

Faço votos do maior êxito do Congresso.

24 de Maio de 2018

(António Henriques Gaspar)

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