fundo

Intervenção no Congresso Comemorativo – “Nos 20 Anos do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas”

22 Mar 2024

É uma grande honra estar aqui, na Academia que me formou.

Por isso, o meu sincero agradecimento pelo convite para participar neste Congresso em que se comemoram os 20 anos do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL 53/2004, de 18 de março.

Ao fim destas duas décadas, e contando já com mais de uma dezena de alterações ao texto inicial, o CIRE continua a regular esta área do Direito, que tem tanto de específica como de importante para a vida da economia e das empresas.

Como juiz, trabalhei 20 anos com a anterior legislação e quase outros tantos com o CIRE de 2004.

Era O Código de Processo Civil de 1961 que regulava a matéria falimentar, consagrando o sistema de falência- -saneamento, em que se dava prioridade às possibilidades de prevenção da liquidação do património do devedor, assim se destronando o sistema de falência-liquidação do CPC de 1939, assente na ideia de que a finalidade da falência era assegurar aos credores a satisfação dos seus direitos, através da liquidação integral do património do falido.

O ponto 32. do preâmbulo do DL 44.129, que aprovou o CPC de 1961 era bem explícito quanto a essa boa intenção, ao dispor:

“A nova regulamentação do processo de falência dá primazia aos meios preventivos.
Não se limita a tratá-los em primeiro lugar, como é de boa ordem; dá-lhes prioridade real. É que a concordata ou o acordo de credores é sempre preferível, em regra, à ruinosa liquidação judicial”.

Lembro-me bem de como era difícil tramitar um processo de falência e de conseguir levá-lo até ao fim num prazo aceitável.

A excessiva burocratização processual imposta pelos artigos 1035º a 1325º do capítulo XV do CPC de 1961 fazia acrescentar volume e complexidade, numa altura em que – recorde-se – todas as notificações se faziam pessoalmente ou por via postal.

 

Nesses primeiros tempos, de muito me valeram as lições de Pedro de Sousa Macedo no seu “Manual de Direito das Falências”.

As regras do Código de Processo Civil de 1961 em matéria falimentar, e outras contidas em diplomas avulsos, de que destaco o DL 177/86, de 2 de julho, em que se instituiu o processo especial de recuperação da empresa como via judicial alternativa ao processo de falência, vigoraram até 1993, ano em que foi publicado o Código de Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo DL n.º 132/93, de 23 de Abril.

Este diploma, no qual se condensou a disciplina falimentar distribuída por legislação vária, eliminou a dicotomia falência de comerciantes/insolvência de não-comerciantes, substituindo-a pela dicotomia empresa/não-empresa, em função da qual se mostraria, ou não, admissível o processo de recuperação.

Continuava a existir, porém, grande demora na tramitação.

Surgiu, por isso, o CIRE de 2004, em cujo ponto 1. do preâmbulo se reconhece a ineficiência do sistema em vigor, ao dizer-se:

“O carácter muitas vezes tardio do impulso do processo, a demora da tramitação em muitos casos, sobretudo quando processada em tribunais comuns, a duplicação de chamamentos dos credores ao processo, que deriva da existência de uma fase de oposição preliminar, comum ao processo de recuperação e ao de falência, a par de uma nova fase de reclamação de créditos uma vez proferido o despacho de prosseguimento da ação, as múltiplas possibilidades de convolação de uma forma de processo na outra, o carácter típico e taxativo das providências de recuperação, são, a par de vários outros aspetos (…), alguns dos motivos apontados para o inêxito da aplicação do CPEREF”.

O CIRE assume-se, assim, como estruturalmente novo, declarando, logo de início, que o objetivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores.

Nas palavras de Menezes Cordeiro, há três linhas inovatórias neste diploma: a primazia da satisfação dos credores, a ampliação da autonomia privada dos credores e a simplificação do processo.

Não podemos, porém, ignorar que o CIRE de 2004 foi copiado da legislação da maior potência económica europeia (a alemã) para ser aplicado a uma das mais frágeis economias da Europa, constituída, em 99,9% por micro, pequenas ou médias empresas.

Entre 2004 e 2022 a percentagem das microempresas subiu de 95,4% para 96,1%, a das pequenas empresas desceu de 3,9% para 3,3% e a das médias empresas manteve-se na modesta percentagem de 0,6%.

Ou seja, o nosso tecido empresarial mantém-se num baixíssimo patamar de desenvolvimento, sendo de apenas 0,1% a percentagem das grandes empresas em contraponto com uma percentagem gigantesca de microempresas e com uma percentagem de pequenas e médias empresas que, no seu total, não perfazem os 4%.

Neste cenário, percebe-se mal que o CIRE se tenha orientado
para o sistema de liquidação do património em detrimento da recuperação da empresa.

Com a reforma de 2012, introduzida pela Lei 16/2012, conseguiu, felizmente, corrigir-se o rumo, voltando-se ao espírito do CPEREF com a instituição do Processo Especial de Revitalização (PER) – artigos 17º-A e seguintes do CIRE.

Na exposição de motivos da Proposta de Lei 39/XII/1, que esteve na origem do dito diploma, declarava-se a intenção de “reorientar o CIRE para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação”.

Têm sido feitos outros ajustamentos legislativos.

Destaque para da Lei n.º 9/2022, de 11 janeiro, que, transpondo para a ordem interna a diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, veio estabelecer medidas de apoio e agilização dos processos de reestruturação das empresas e dos acordos de pagamento, tendo para o efeito procedido a um conjunto de alterações no Código da Insolvência e da Recuperação Empresas, com especial incidência no Processo Especial de Revitalização.

Apesar das intervenções do legislador, persistem algumas dificuldades que já poderiam ter sido resolvidas ou clarificadas.

Tem sido imenso o esforço da jurisprudência para poder colmatar essa falta de iniciativa.

No aspeto processual, lembro, por exemplo, o caso do artigo 14º, n.º 1, do CIRE relativamente à possibilidade de, para além das hipóteses ali previstas, se estender a revista às demais ações declarativas apensas ao processo de insolvência.

Finalmente, o Acórdão n.º 13/2023, de 21 de novembro, uniformizou a jurisprudência no sentido de que essa regra restringe o acesso geral de recurso ao STJ às decisões proferidas no processo principal de insolvência, nos incidentes nele processado e aos embargos à sentença de declaração de insolvência.

Anos e anos de discussão, perda de tempo e de energias num assunto que poderia ser facilmente resolvido se o legislador seguisse com alguma atenção as polémicas jurídicas que se arrastam por largo tempo devido a insuficiente definição normativa.

Já que faço referência à jurisprudência uniformizada do STJ, deixo uma nota informativa sobre a mais recente uniformização, tirada no Pleno das Secções Cíveis da passada terça-feira, dia 19, em que se uniformizou jurisprudência quanto a duas questões que têm também originado alguma controvérsia.

A primeira dessas questões consiste em saber se o pagamento e a repartição do produto da venda entre os credores, tidos em vista pelo n.º 2 do artigo 149.º do CIRE, se dão com o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos no processo executivo onde foi efetuada a venda ou se só se dão com a transferência desse produto para a esfera jurídica dos credores, mediante o pagamento por parte do agente da execução ou da secretaria.

A uniformização foi no sentido deste último entendimento, ou seja,

• O produto da venda dos bens penhorados em processo de execução, no qual tenha sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos, com trânsito em julgado, só é de considerar pago ou repartido entre os credores, para os efeitos do artigo 149º, n.º 2, do CIRE, com a respetiva entrega.

A segunda questão, inserida no âmbito da aplicação dos artigos 128º e 129º do CIRE, é a de saber se o titular de um crédito reconhecido e graduado por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito de um processo de execução, que seja apenso ao processo de insolvência do devedor, está dispensado de reclamar o seu crédito, no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.

A uniformização foi no sentido de que:
• O titular de um crédito reconhecido e graduado por sentença transitada em julgado num processo de execução, apensado ao processo de insolvência do devedor/executado, não está dispensado de reclamar o seu crédito, no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.

Fechado este parêntesis jurisprudencial, parece haver algum consenso quanto à necessidade de clarificação do quadro normativo aplicável ao incidente de qualificação culposa (refiro-me em particular ao artigo 186º), responsável por grande agitação jurisprudencial.

Também deverá ser melhorada a fase da liquidação, cuja duração, em regra, é responsável pela morosidade dos processos de insolvência.

É certo que através da Lei 9/2022, conseguiu melhorar-se o regime da fase da liquidação, nomeadamente através da alteração da parte final do artigo 158º, n.º 1.

Creio, contudo, que, sem prejuízo das competências próprias do administrador da insolvência, seria aconselhável um maior envolvimento do órgão representativo dos credores, em nome de uma mais célere e eficiente liquidação do ativo.

Num momento em que se verifica um significativo aumento de insolvências, é fundamental que se redobre a atenção para resolver os aspetos menos conseguidos da legislação vigente, que se apontem os bloqueios e se indiquem os caminhos de solução.

Estou absolutamente convicto de que a reflexão que aqui hoje ocorreu irá servir para encontrar esses caminhos e ajudar à sobrevivência de um Código que, tendo nascido com problemas vários, tem vindo a aprumar-se, garantindo um resultado que se crê positivo num domínio tão importante para a saúde da nossa economia.

Para terminar, permitam-me que recupere uma passagem do ponto 32. do preâmbulo do CPC de 1961, onde em tom crítico, se aludia ao ambiente processual criado pelo regime do CPC de 1939.
Passo a citar:

“A falência propriamente dita não pode deixar de ser, pelos termos em que se desenvolve, um processo necessariamente caro, demorado e de rendimento relativamente reduzido. As vendas fazem-se quase sempre ao desbarato. As cobranças prolongam-se e exigem a cada passo complicados litígios. As custas e despesas de administração absorvem grande parte do produto obtido”- fim de citação.

Este retrato tão negativo já não corresponde, felizmente, à realidade.

Mas a pergunta que deixo aos distintos congressistas é a seguinte:
Quanto dessa frase tem ainda algo de verdadeiro?

 

Lisboa, 22 de março de 2024

Henrique Araújo, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

 

voltar
Uilização de Cookies

A SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA pode utilizar cookies para memorizar os seus dados de início de sessão, recolher estatísticas para otimizar a funcionalidade do site e para realizar ações de marketing com base nos seus interesses.

Estes cookies são essenciais para fornecer serviços disponíveis no nosso site e permitir que possa usar determinados recursos no nosso site.
Estes cookies são usados ​​para fornecer uma experiência mais personalizada no nosso site e para lembrar as escolhas que faz ao usar o nosso site.
Estes cookies são usados ​​para coletar informações para analisar o tráfego no nosso site e entender como é que os visitantes estão a usar o nosso site.