O Congresso teve como ideia-projecto de referência “Uma advocacia mais forte numa sociedade mais justa”.
Este projecto, de debate e de acção, procura encontrar as condições para que a advocacia e a função de advogado possam ser e devam ser fortes, como condição para uma sociedade mais justa. Mais justa – aqui – com o sentido de sociedade que cultive e se cultive nos valores da justiça e na realização da justiça através do direito.
Os temas escolhidos como objecto de reflexão para este 8º Congresso – identidade da profissão; tutela de direitos; administração da justiça e aperfeiçoamento da ordem jurídica – permitiram beneficiar de relevantes contribuições, tanto para construir o meio – uma advocacia mais forte, como para concretizar o fim – uma sociedade mais justa.
Por mim, e na qualidade por que me concederam a honra e o privilégio de aqui estar hoje com todos vós, deixo a adesão e a partilha inteiras à exigência democrática de uma advocacia mais forte e à obrigação de fazermos – todos – uma sociedade mais justa.
As representações sociais associam o advogado à ideia de liberdade e de independência, condições para cumprir uma missão essencial à cidadania e, por isso, essencial à democracia.
A advocacia faz a mediação entre o cidadão e as autoridades; acompanha no aconselhamento, informação e esclarecimento; exerce a representação e o patrocínio.
A força e o prestígio da advocacia constituem sensores da vitalidade do Estado de direito e são a medida do limite entre o Estado de direito e o enfraquecimento insuportável dos valores constitutivos do Estado de direito.
No núcleo da teoria – na concepção histórica do Rechtsstaat – está a questão do arbítrio, ou arbitrário, do poder, da violência potencial que pode existir nas relações de dominação, seja pública ou privada.
A resposta ao estado da natureza ou às derivas despóticas do poder político foi a supremacia da lei, reforçada com as virtudes da justiça, da razão e da objectividade.
Revertendo à definição kantiana, ao reino de facto, da força ou da pura vontade, opôs-se o ideal de um regime político onde a lei comande por si mesma, não dependendo de um indivíduo específico, num Estado constituído segundo os princípios do direito, que faça respeitar a lei e que respeite ele próprio a lei.
O advogado é, na acção, um construtor dos princípios do Estado de direito, quando possibilita que o juiz, colocado no lugar central do conceito numa evolução que se produziu ao longo do tempo e que se consolidou sobretudo no séc. XIX, possa, em cada acto e em momentos decisivos, fazer a passagem entre a vida e os valores constitutivos, com o distanciamento critico e a prudente vigilância axiológica, numa sociedade dinâmica e híper-complexa.
A sociedade justa é a sociedade construída e marcada por uma ideia de justiça comunitariamente aceite.
Podemos dizer que existe uma tripla ordem de valores que regem o Mundo e as sociedades humanas: a justiça, a liberdade e a paz. Valores que, na realidade, são apenas um – a Justiça; apoiando-se a justiça na verdade, o que se alcança é a paz.
Mas falta uma definição comum do que é justo e injusto.
Na história da Humanidade diversas concepções de justiça perderam-se nas ideologias, nos ideais e nas utopias.
No mais simples, na ideia essencial, a justiça vive-se no sentimento de injustiça; o primeiro sentimento, a primeira experiência como emoção que nos confronta, não é a justiça, mas a injustiça.
O sentimento de justiça apreende-se, assim, de primeiro, na experiência ou na percepção da injustiça, ou por uma concepção empírica do injusto como limite do tolerável.
A percepção, recolhida ou vivida como primeira experiência, condiciona em cada um a compreensão do núcleo dos fundamentos da justiça: se a justiça se funda estritamente em convenções humanas ou se existe e pode supor-se uma justiça, ou injustiça, inerente ao curso das coisas; se a justiça constitui uma categoria ou valor positivo, instituído ou político, ou antes, se tem que ver com um sentido moral, fundador de uma regra que ultrapassa o âmbito humano – na síntese de Gustavo Zagrebelsky.
Os conceitos de justiça e de injustiça são apreendidos e interiorizados, mais do que compreendidos, através de «pré-noções» ou pré-compreensões resultantes de experimentações vividas.
A noção de justiça nasce das primeiras experiências vividas, é empiricamente pré-elaborada e recebida e percebida como sentimento.
A justiça é sentimento, enquanto «reacção sensível e subjectiva, nascida de uma emoção, mas que constitui um estado afectivo mais duradouro do que a emoção»; sentimento porque «não está do lado do conhecimento, que releva da razão e não é ainda discursivo; é reactivo».
A sociedade justa é a sociedade com justiça; será tão mais justa quanto melhor garanta a ambição de justiça.
As sociedades não são, porém, homogéneas.
Na mesa fria da anatomia dos conceitos, cada sociedade tem de escolher qual será o conceito denominador comum da justiça, como base da construção de uma sociedade mais justa.
Alguns princípios devem constituir a referência: os direitos humanos património comum da nossa cultura; a capacidade de enfrentar novos problemas dentro da mesma razão de pensamento; a recusa dos utilitarismos e das definições formais que são apenas máximas de poder; a justiça como equidade; a dúvida sobre se a razão dos homens livres conduz de modo inequívoco ao bem e à justiça.
Volto a Zagrebelsky: a esperança na justiça desaparece quando exista opressão, mas também onde só exista resignação, atrofia axiológica, aturdimento ou niilismo moral.
Na administração da justiça – a justiça dos tribunais – o valor de justiça passa muito pela legalidade; mas a identificação da justiça com o cumprimento da lei é redutora. A formulação constitucional e pré-constitucional dos grandes princípios de justiça – dignidade humana, liberdade, igualdade – revelam que a justiça não se esgota na legalidade e que o próprio legislador está submetido ao valor superior da justiça.
Na complexa teia conceptual, a advocacia tem de ser forte para participar na construção de uma sociedade mais justa.
Forte na afirmação dos direitos, a começar nas garantias constitucionais, através dos meios e formas adequados.
A advocacia deve colocar a justiça como questão política central.
E, na quitação deste dever, participar no debate público com autorictas e liberta de vínculos que não sejam a ética e a deontologia, e discutir as questões da justiça na sociedade, especialmente o aperfeiçoamento da ordem jurídica.
Na defesa dos interesses que lhe estão confiados, o advogado co-participa na tutela dos direitos, na escultura de cada rosto da justiça com o rigor da inovação intelectual, na busca de novas formas de desenvolvimento do direito, no controlo processual da dimensão constitucional e no uso racional e teleologicamente orientado do processo equitativo, justo e leal.
Nesta perspectiva, se o juiz é o garante último dos direitos e da conjugação e da concordância entre a lei e os princípios, o advogado deve ser o colaborador principal do juiz na missão de dizer o direito e administrar a justiça.
Mas esta é uma época de excessos; perde-se o sentido da justa medida e fica fragilizado o valor da proporcionalidade como princípio.
Há abuso e excesso de linguagem; um dos conceitos mais abusados é o conceito de liberdade.
O abade Henri Lacordaire, próximo dos mais fracos, que viveu em França no séc. XIX, deixou-nos uma frase forte e densa, que se mantém actual.
«Entre le fort et le faible,
entre le riche et le pauvre,
entre le maître et le serviteur,
c’est la liberté qui opprime
et la loi qui affranchit».
Lacordaire sabia que, para o fraco, a liberdade pode ser puramente teórica e que a liberdade do forte pode ser opressora; aí, a lei liberta – liberta porque faz a liberdade do fraco.
Mas a lei só liberta se não for a lei do mais forte, seja das maiorias, da assimetria social, dos grupos de pressão, da opinião manipulada, da desconstrução insidiosa dos direitos fundamentais ou dos mercados na ideologia paneconómica.
A lei que liberta é a lei da justiça e do respeito da dignidade da pessoa humana, que realize a igualdade nos direitos, mas sobretudo a igualdade na concretização dos direitos.
Os direitos humanos são a base da lei justa que liberta; a pessoa humana não pode ser nunca um instrumento mas um fim.
Na defesa da lei justa, que é a lei que liberta no aforismo de Lacordaire, o advogado pode ser o mestre desta libertação – e, por aí, ser actor relevante no caminho para uma sociedade mais justa.
O Congresso foi, com certeza, uma parte deste caminho.
No termo de quase 47 anos de magistrado, que gostaria que pudesse ter sido um serviço à justiça, deixo um sentimento pessoal.
Tive o privilégio de conhecer e trabalhar com muitos e muitos advogados.
Aprendi tanto com todos, personalidades ilustres, de elevadíssimas competências, juristas brilhantes, mulheres e homens de espírito aberto que marcam o rigor e a liberdade no exercício do mandato, referências na cidadania e na defesa intransigente dos valores da Justiça e do Estado de direito.
A todos esses – aos que estão e aos que partiram – e a todas e a todos os advogados de Portugal, institucionalmente representados neste Congresso, a minha homenagem e o meu reconhecimento.
16 de Junho 2018
(António Henriques Gaspar)
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