A Democracia, os Direitos e o Desenvolvimento foi o que se debateu neste XII Congresso dos Juízes Portugueses, que agora se encerra.
Temas tão vastos que apenas permitiram um olhar parcial sobre um mar de problemas que afetam a atualidade mundial, desde a crise dos regimes democráticos, ao crescente atropelo dos direitos humanos em vários pontos do globo e ao desenvolvimento assimétrico e desregulado das nações.
A Europa é também, neste momento, um caldeirão efervescente em que borbulham problemas como a guerra na Ucrânia, os movimentos de refugiados, os massivos fluxos migratórios com origem no Norte de África e na Ásia, o descontentamento social, a xenofobia e o ressurgimento de ideologias nacionalistas.
A instabilidade gerada por estes fenómenos é potenciada pelas novas tecnologias da revolução digital.
A facilidade e velocidade como hoje se comunica e se divulgam mensagens e informações pela internet, seja através das redes sociais ou de plataformas digitais, permitem a livre disseminação de todo o tipo de ideias e ideais.
A sobrecarga de informação disponível e a sua maior personalização, retiram ao utilizador das redes e plataformas qualquer possibilidade de rastrear a verdade, em tempo útil.
Daí ao enviesamento cognitivo e à desinformação vai apenas um pequeno passo.
É neste contexto de galopante digitalização das sociedades que se perceciona o risco, bem real, de cairmos num vazio ético e moral, impotentes para suster o enfraquecimento das instituições e a derrocada dos princípios e valores que ainda marcam a vida das sociedades ocidentais.
A União Europeia faz o que pode.
Tenta regular, impor limites ao ativismo digital.
Mas num mundo globalizado e com uma evolução tecnológica sem paralelo na história da humanidade, quase tudo é possível e quase nada é previsível.
A incerteza provocada pela aceleração tecnológica e social transformou radicalmente o tipo de reação ao que é novo e encurtou os ciclos de decisão. Racionalizamos apenas respostas instantâneas, sem perspetivas estratégicas ou antecipatórias.
O nosso País não escapa, obviamente, a todo este movimento.
Por isso, nunca como agora, a Justiça deverá assumir-se como o principal bastião dos direitos, da democracia e da segurança dos cidadãos.
Terá obrigatoriamente de estar mais preparada para dar resposta adequada aos desafios de um futuro que é mais difícil de conhecer do que nunca.
Excelências:
Não acredito em figuras providenciais.
Mas acredito que existem pessoas na política, economia, cultura, ensino ou ciência, que, quando colocadas em lugares de liderança, conseguem, com muito trabalho e algum talento, apontar o rumo certo e deixar uma marca positiva da sua passagem.
Também não acredito em pessoas infalíveis e sempre bem equipadas em matéria de certezas.
Mas estou seguro – todos estaremos – de que o erro, a falha, a involuntária omissão, fazem parte da vida.
Também na Justiça o erro é um elemento presente, seja em quem tem por função julgar os conflitos, seja em quem tem a responsabilidade de dirigir os órgãos ou instituições do setor.
O erro é suscetível de crítica.
Mas não só o erro.
A própria divergência de ponto de vista ou da solução dada a determinada matéria pode suscitar críticas, questionamentos.
Tudo legítimo, tudo normal.
Na vida das sociedades democráticas há sempre espaço para o protesto, para a divergência, para a crítica.
Mas também tem de haver espaço para a transformação e construção de novas ideias e soluções.
O problema é, muitas vezes, a forma como a crítica se apresenta ou como a construção das ideias ou soluções se desenvolve.
Se a crítica for apresentada com truculência, ou com agressividade, ou com o único intento de atingir pessoas, nada se ganhará, porque, ao contrário do que se possa pensar, a forma também tem substância e a mensagem transmitida de forma incorreta ou grosseira tende a ser descredibilizada.
É verdade que os tempos atuais são marcados pela desconfiança, por muita ansiedade e impaciência. Vivemos aquilo que um célebre investigador de filosofia política e social designa por uma ‘democracia irritada’, em que a crítica é, por assim dizer, acrítica, na medida em que apenas transporta cargas de indignação ou mal-estar, sem conteúdo prestável.
Sendo frequente em Portugal esse tipo de crítica puramente destrutiva, fica explicada a pouca progressão na concretização das ideias.
E ficam também explicados o modo doloroso de cada processo construtivo e a habitual demora na sua concretização.
Por que será que só construímos soluções se estivermos uns contra os outros?
Por que será que não construímos uns com os outros?
Senhor Presidente da República
Caros Colegas
A Justiça enfrenta muitos problemas que necessitam de reflexão e debate.
Exige-se serenidade, aprumo e elevação nesse debate.
Principalmente por parte dos juízes, porque é isso que deles se espera: o respeito pela opinião divergente, a ponderação serena, a urbanidade relacional.
Divergir não significa que uns pensem bem e outros pensem mal. Significa apenas que existem visões diferentes, todas respeitáveis.
Nem todos pensamos da mesma maneira sobre o desenho constitucional de organização dos tribunais ou o modelo de formação de magistrados. Nem sobre a composição e atuação do Conselho Superior da Magistratura ou a gestão dos tribunais. Nem sobre a oportunidade de alteração das leis processuais. Nem sobre a proteção de dados e a utilização da inteligência artificial no judiciário.
A necessidade de se avançar na definição do que é melhor para o sistema judicial obriga a que se discutam amplamente essas e outras matérias, procurando aproximações e entendimentos.
No discurso de abertura do ano judicial de 2022 alertei para a necessidade de se fazerem mudanças estruturais e conjunturais no sistema judicial.
Invoquei a utilidade que para esse efeito poderia ter o estudo realizado pela Sedes, Sociedade de Estudos para o Desenvolvimento Económico e Social, publicado em dezembro de 2021.
Decorrido um ano, reafirmo o interesse em que se olhe com muita atenção para esse estudo, principalmente naquilo que diz respeito às soluções de natureza mais estrutural.
Hoje, contamos com outro valiosíssimo contributo.
Na Agenda para a Reforma da Justiça, elaborada sob impulso da Associação Sindical, traça-se um quadro exaustivo das medidas que poderão melhorar o funcionamento do sistema, apesar de aí se reconhecer que isso só será possível com consensos políticos e pactos de regime.
O ideal seria que se aproveitasse o processo de revisão constitucional em curso para inscrever mudanças significativas no modelo de organização dos tribunais e dos seus órgãos de gestão e disciplina.
Porque é pelo princípio que se começa, não vejo como possa melhorar-se a resposta do sistema judicial, sem uma redefinição da sua estruturação orgânica.
Parece-me, porém, que irá perder-se mais esta oportunidade.
Continuaremos com os constrangimentos que dificultam o funcionamento de alguns dos componentes do sistema e com a consequente e injusta diluição das responsabilidades pelo conjunto dos seus elementos.
Voltando à Agenda para a Reforma da Justiça, o número de recomendações feitas ao legislador e o leque de medidas propostas é compreensivelmente inexequível num prazo curto, até porque, de acordo com essa agenda, algumas das medidas se inscrevem numa lógica de longo prazo.
Por isso, e à falta de uma intervenção imediata no plano estrutural, penso que seria da maior importância estratificar as prioridades, já que me parece não poder fazer-se depender a concretização das medidas mais urgentes de uma lei de programação para a justiça, conforme vem proposto no estudo apresentado.
Já vai longa a espera por uma verdadeira reforma da Justiça, que não pode resumir-se à modernidade de alguns temas, como a digitalização ou o uso da inteligência artificial nos tribunais.
Este é o momento da tomada de decisões importantes para a área da Justiça.
Este é o momento em que os responsáveis políticos do País têm de olhar para a Justiça com toda a atenção e desencadear os processos legislativos de reforma da Justiça, ouvindo todos os que operam nesta área.
Este é o momento de agir.
Em conjunto.
Uns com os outros!
FUNCHAL, 18 de março de 2023
Henrique Araújo, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
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