A partir de três citações, tentarei abordar, de forma obrigatoriamente sintética, alguns dos temas que considero oportunos nesta ocasião: a cerimónia de abertura do ano judicial como momento de reflexão, responsividade e projeção do futuro do sistema de justiça; a responsabilidade dos órgãos legiferantes; e o escrutínio da Justiça pela comunicação social.
A cerimónia de abertura do ano judicial realizou-se pela primeira vez no ano de 1940 e sabemos que se repetiu nos anos seguintes, até 1945.
A partir desse ano não existem mais notícias sobre a sua realização.
Em 23 de dezembro de 1987, a Lei Orgânica 38/87, estabeleceu que o início do ano judicial passaria a ser assinalado com uma sessão solene.
Daí para cá assim tem sido, apesar de no passado ano não ter sido possível a realização da cerimónia por razões que todos conhecemos, associadas à crise pandémica.
Foram essas mesmas razões que, neste ano de 2022, impediram que tivesse lugar no dia 10 de janeiro, data inicialmente aprazada para o efeito.
Designada, depois, a data de 9 de março, também não foi possível respeitá-la por motivos relacionados com as eleições legislativas.
Estamos hoje, enfim, aqui reunidos para cumprir esse ritual, embora com cerca de um terço do ano judicial já transcorrido.
O avanço do calendário judicial não retira, porém, propriedade nem oportunidade ao ato.
É sempre tempo de prestar contas e de apresentar aos cidadãos o ponto em que se encontra a ação geral da justiça.
É também sempre tempo de projetar o futuro.
1.
Numa entrevista concedida, em setembro de 2018, a uma plataforma noticiosa digital, o Senhor Juiz Conselheiro Laborinho Lúcio descreveu esta cerimónia do seguinte modo:
“(…) todos os anos na abertura do ano judicial temos aquela sessão pública que consideramos importante (…): fala o presidente da República, fala o primeiro-ministro, fala o ministro da Justiça, fala o bastonário da Ordem dos Advogados, fala o Procurador-Geral da República, fala o presidente do Supremo Tribunal de Justiça (…). Cada um deles diz de si bem, relativamente mal dos outros, todos normalmente menos bem do poder político, e o poder político apresenta todos os anos medidas regeneradoras da Justiça. Acaba a sessão, vão todos embora e nunca mais se encontram até ao ano seguinte, em que dizem a mesma coisa ou coisas parecidas” – fim de citação.
Descontada a ironia, esta apreciação não anda muito longe da realidade.
Tem havido pouco diálogo, nenhuma concertação e muito distanciamento quanto aos objetivos a prosseguir.
A cerimónia de abertura do ano judicial deve ser mais do que um momento proclamatório dos intervenientes.
Deve incorporar compromissos para um entendimento alargado das várias profissões forenses, de modo a que, no ano subsequente, se possa fazer o balanço do que foi e do que não foi alcançado.
É imbuído deste espírito que mais adiante enunciarei algumas medidas que poderão ser desenvolvidas em benefício de um sistema de justiça mais eficaz e com maior transparência.
Há, de facto, vários aspetos a reformar no atual modelo.
A construção das soluções deve, contudo, ser feita em diálogo permanente e com a participação de todos os profissionais forenses: magistrados judiciais e do Ministério Público, advogados, solicitadores e agentes de execução, oficiais de justiça e funcionários.
Mas, independentemente das medidas de caráter conjuntural a incrementar, tem de haver abertura para uma alteração mais estrutural do modelo do sistema, mesmo que isso passe – como seguramente passará – pela revisão de algumas normas da Constituição.
A definição dessa intervenção mais estrutural, caberá naturalmente ao poder político.
A atual distribuição de forças políticas no Parlamento constitui uma oportunidade única para reformar o sistema de Justiça.
Seria penalizador para a sociedade que, num contexto tão favorável, a doce e sedutora inércia acabasse por vencer.
Numa sociedade com dinâmicas tão velozes e, por isso, com necessidade de uma proteção mais efetiva e eficaz dos interesses dos cidadãos, a discussão sobre uma outra forma de organização da Justiça deve ser feita sem preconceitos ou extremismos corporativos, porque a Justiça não pertence a nenhum grupo ou classe.
A Justiça é de todos e representa a maior garantia da liberdade.
Existe, contudo, um limite intransponível, inegociável, em qualquer reforma mais estrutural que se pretenda realizar: a intocabilidade da independência do poder judicial. Só assim os tribunais poderão continuar a cumprir o Estado de Direito democrático e a garantir a liberdade dos cidadãos.
Há, portanto, todo um caminho a percorrer.
Muitos são os contributos que podem orientar a mudança, tanto no plano conjuntural como estrutural, todos com a dose de controvérsia indispensável à descoberta das melhores soluções.
Por exemplo, a Sedes, Sociedade de Estudos para o Desenvolvimento Económico e Social, publicou, em dezembro do passado ano, um estudo para a área da Justiça que passou praticamente despercebido.
Esse e outros estudos ou ensaios publicados por pessoas ou organismos que se têm dedicado aos problemas da Justiça podem constituir uma base de trabalho interessante e proveitosa para mudar o que está mal e melhorar o que está menos bem.
2.
Senhor Presidente da República
Excelências
No discurso proferido em 1 de março de 1959 na inauguração do Palácio de Justiça de Tomar, o Professor Antunes Varela, então Ministro da Justiça, disse:
“Mais do que do desafogo ou do conforto das instalações, mais do que a própria perfeição técnica do sistema legislativo, é de bons magistrados e de honestos funcionários de justiça que a coletividade necessita para seu governo”.
Apesar de já terem decorrido mais de 60 anos, não podemos deixar de concordar com estas palavras.
Mas, no contexto histórico em que foram proferidas, a técnica legislativa de que falava Antunes Varela não sofria dos males que hoje a apoquentam.
Sem querer, de modo algum, diminuir a importância de o sistema judicial estar dotado de magistrados competentes e funcionários honestos, nenhum modelo de justiça resiste sem uma produção legislativa de qualidade.
Uma produção legislativa que não obedeça a impulsos espoletados por este ou por aquele caso judicial, pela atuação deste ou daquele tribunal ou por critérios de oportunidade política.
As leis não se podem fazer com pressa, a rebate dos sinos.
Se ainda hoje temos um Código Civil com mais de 50 anos e um Código Penal que este ano celebra 40 anos de vigência é porque a elaboração desses diplomas, e de alguns outros com similar vetustez, foi cuidadosa e paciente, assentando em estudos e trabalhos preparatórios orientados por metodologias adequadas.
Tudo sem recurso aos modernos outsourcings legislativos …
Se a legislação tiver qualidade, ganha-se em segurança jurídica e eficácia.
A par de uma produção legislativa de qualidade, seria de grande utilidade a existência de um programa integrado de avaliação legislativa para medição do impacto das medidas adotadas em cada momento.
3.
Excelências
O escrutínio dos juízes e das suas decisões, ao contrário do que muitas vezes se tenta fazer passar, é bastante amplo.
As decisões dos tribunais são escrutinadas pelos académicos das Faculdades de Direito e por um sistema de recursos bem abrangente.
A atuação funcional dos juízes é igualmente escrutinada pelo Conselho Superior da Magistratura no âmbito do processo de avaliação para progressão na carreira.
Mas o maior, mais visível e mais impactante escrutínio é o que é feito pela opinião pública, através da comunicação social.
Escrutínio que assumiu maior intensidade quando, cumprindo-se objetivos de transparência, se avançou para a publicação de todas as decisões dos tribunais superiores nas bases de dados de consulta livre.
Esse escrutínio é fundamental.
Ao trazer para o espaço público a discussão sobre o trabalho dos tribunais e as suas decisões, a comunicação social presta um relevantíssimo serviço à comunidade.
E presta também um importante contributo ao próprio sistema de Justiça, na medida em que põe a descoberto as suas insuficiências e falhas.
Menos virtuoso é o comentário jornalístico tecido sem base concreta ou científica, meramente intuitivo, servido com farta adjetivação e carregado de generalizações.
Ainda há dias, o autor de um artigo de opinião sobre o estado da Justiça traçava o seguinte quadro:
“Sabemos, em poucas palavras, que a Justiça é lenta. Injusta. Socialmente desequilibrada. Cara. Parcial. Elitista. Ineficaz. Incompreensível. Complicada. Burocrática. Complacente com a corrupção. Por vezes, mesmo ela própria corrupta. Permissiva.” – fim de citação.
Uma descrição tão negativa, tão arrasadora, não coincide, felizmente, com a realidade, embora reconheçamos que alguma da adjetivação se relaciona com aspetos a melhorar.
Os meios de comunicação social desempenham, repito, um papel de extraordinária importância na divulgação e crítica das decisões judiciais e do funcionamento dos tribunais.
Ao noticiarem, com rigor e isenção, a atividade dos tribunais realizam, de facto, o melhor e mais importante escrutínio.
Mas nem sempre isso acontece.
Aquilo que deveria ser o escrutínio feito através da notícia séria e rigorosa converte-se frequentemente em espalhafato mediático.
As repetidas e descaradas violações do segredo de justiça continuam a alimentar, impunemente, as primeiras páginas de alguns jornais; o comentário sistematicamente genérico, de crítica fácil e infundada, ocupa cada vez mais espaço comunicacional; a exposição da vida privada das pessoas a braços com processos judiciais, transforma alguns meios de comunicação numa espécie de arena da devassa.
Dir-me-ão: pouco se pode fazer quanto a isso.
É provável! Mas não posso deixar de mencionar esta questão, quanto mais não seja para apelar ao sentido de responsabilidade da comunicação social como veículo de mediatização da Justiça e também para dizer que é mais do que tempo de se estancar a violação do segredo de justiça e de se punirem os seus responsáveis.
Senhor Presidente da República
Excelências
Uma das grandes preocupações dos tribunais comuns é o envelhecimento das magistraturas.
Como tenho apontado em diversas ocasiões, o acesso às Relações e ao Supremo Tribunal faz-se muito tardiamente.
A promoção ao Supremo verifica-se, em regra, quando já se está muito próximo da idade que permite a jubilação.
Não é de estranhar, por isso, que haja um grande número de jubilações, tendência que vai agravar-se nos próximos tempos.
Concomitantemente, a saída de magistrados do sistema não tem sido compensada anualmente com a entrada de novos magistrados, uma vez que o número daqueles excede o destes.
É preciso intervir já, nomeadamente através da alteração da lei de acesso ao Centro de Estudos Judiciários e do reforço da sua capacidade formativa.
Esta é, provavelmente, a questão mais candente, mais prioritária.
Mas outras questões urgentes se perfilam, e que enunciarei brevemente, sem qualquer ordem de precedência.
É necessário, em nome do princípio da transparência, repensar o regime das comissões de serviço de magistrados judiciais para cargos políticos ou para o exercício de funções relevantes de natureza política, tão nobres e dignas como as funções judiciais.
Quando se escolhe a magistratura como profissão, essa escolha deve ter-se por definitiva.
Se a vocação política despontar no percurso de magistrado , a opção por esse novo caminho não deverá permitir o regresso à judicatura.
É também crucial a revisão do regime de assessoria, de modo a efetivar-se o apoio consagrado em sucessivas leis orgânicas.
O Supremo continua há cerca de 30 anos com o mesmo número de assessores, as Relações não têm qualquer assessoria e os tribunais de 1ª instância contam com um serviço de assessoria muito residual.
É necessário, por outro lado, ponderar e regular a forma como os sistemas de inteligência artificial podem intervir na ação judicial.
O Supremo tem em curso um projeto de inteligência artificial para efeitos de anonimização e sumarização de acórdãos, mas é preciso refletir sobre outro tipo de intervenção mais profunda ao nível de procedimentos massificados com reduzido traço jurisdicional, como já se vai fazendo noutros ordenamentos jurídicos europeus.
A mudança do domínio e do controlo do Ministério da Justiça para o Conselho Superior da Magistratura das plataformas digitais de tramitação e gestão processual, é um outro aspeto que deve merecer atenção, em ordem a garantir-se o princípio da separação de poderes.
Permitam-me, por fim, que insista num ponto que, para mim, é sacramental: as leis do processo civil e do processo penal devem adequar-se aos tempos presentes, tornando os processos mais ágeis e evitando que os litigantes com intuitos dilatórios se barriquem em expedientes que atrasam a decisão final e definitiva.
Terminarei com um agradecimento e um compromisso.
O agradecimento ao Senhor Presidente da República.
Vossa Excelência perseverou para que esta cerimónia se realizasse, não obstante os contratempos que foram surgindo, fazendo sempre sentir a importância deste momento para a vida da instituição.
A minha profunda gratidão e a de todos os que comungam o propósito de se conseguir um aparelho de Justiça que sirva melhor os interesses da comunidade.
O compromisso é o de que procurarei contribuir, afincadamente, para que se alcancem melhores resultados e maior eficácia na administração da Justiça.
Sei que Vossa Excelência, Senhora Ministra da Justiça, está atenta aos problemas do setor e empenhada em resolvê-los em diálogo construtivo com todos os profissionais forenses.
Contará sempre com a minha colaboração e lealdade institucionais.
E se, na cerimónia do próximo ano, não se repetir muito do que aqui hoje foi dito, é sinal de que algo se alcançou de positivo, que se fizeram avanços e se caminhou na direção certa.
Lisboa, 20 de abril de 2022
Henrique Araújo, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
voltar