fundo

XVIII Encontro Anual do Conselho Superior da Magistratura

10 Out 2024

Senhor Presidente da Assembleia da República

Senhora Ministra da Justiça

Senhoras Juízas e Senhores Juízes

 

Cheguei aos Tribunais meia dúzia de anos após a Revolução de Abril.

Na altura esvanecia-se a turbulência inicial própria de uma Revolução e consolidava-se um regime democrático com a Revisão Constitucional de 1982.

Além de ter sido reduzida a carga ideológica da Constituição, redefiniu-se o desenho das estruturas do poder político e, num gesto pleno de significado, o Conselho da Revolução deu lugar ao Tribunal Constitucional.

Por sua vez, no n.º 1 do artigo 223.º constitucionalizou-se a composição do Conselho Superior da Magistratura que no texto original da Constituição de 1976 havia substituído o velho Conselho Superior Judiciário.

O legislador constituinte sentiu a importância crucial desse aparente pormenor na arquitetura do equilíbrio dos poderes do Estado.

Coincidindo com a estabilização de um Estado de direito democrático que sucedia a um longo período de 48 anos de ditadura, os Tribunais, após um breve período de indefinição iriam conhecer uma profunda revolução, sem pompa nem circunstância, mas dotada de uma eficaz capacidade de rutura.

Ainda hoje ouvimos amiúde que o 25 de abril nunca chegou aos tribunais e que o poder judicial permaneceu, e que 50 anos depois se mantém, incólume à mudança de regime.

Note-se que no universo da Justiça, as consequências de uma mudança política radical são imediatamente detetadas ao nível das suas estruturas de governo, resultam reflexamente das múltiplas reformas do ordenamento jurídico global mas, sobretudo, exigem uma nova mentalidade dos seus protagonistas.

A ausência de um saneamento político dos juízes que integravam a magistratura quando ocorreu a Revolução não resultou de estes terem demasiado poder para ser afrontado, mas sim por serem até aí tratados como meros funcionários aplicadores da lei, não constituindo, por isso, uma ameaça às novas elites governantes.

As tiradas sensacionalistas de que Abril nunca chegou aos tribunais, normalmente proferidas a propósito de eventos processuais mediáticos, revela um profundo desconhecimento da evolução do sistema judicial e da vida diária dos tribunais.

 

Em primeiro lugar, cedo ocorreu uma mudança radical na governação dos juízes.

A consagração de órgãos especificamente dedicados ao governo da função judicial, resultou do princípio da separação dos poderes estaduais que presidiu à criação do Estado de Direito liberal.

A consciência de que os juízes não podiam ser uma ilha isolada e que estariam necessariamente inseridos num sistema administrativo que assegurasse as condições materiais da atividade de julgar, exigia um órgão que retirasse o poder judicial da esfera de influência do poder executivo.

Em abril de 1974, nos termos dos Estatutos Judiciários aprovados em 1944, com as alterações introduzidas em 1962, esse órgão era o Conselho Superior Judiciário, cujo nome remontava aos últimos anos da Monarquia e que tinha a seguinte composição: como Presidente, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, um Vice-Presidente, os então quatro Presidentes das Relações, na qualidade de vogais, e um Juiz Secretário.

Todos os seus membros eram juízes nomeados pelo Governo e as atribuições deste órgão eram meramente informativas e consultivas do Ministério da Justiça, pelo que a subtração do poder judicial ao poder executivo era uma farsa, sendo verdadeiramente o Ministro da Justiça quem assumia o governo dos juízes.

Em 4 de Junho de 1974, no cumprimento do Programa do Movimento das Forças Armadas, que previa a adoção de medidas tendentes a assegurar a independência e a dignificação do poder judicial, foi aprovado pelo 1.º Governo Provisório, chefiado por Palma Carlos, sendo Salgado Zenha o Ministro da Justiça, o Decreto-Lei n.º 261/74.

Este diploma determinou que no prazo de 30 dias se procedesse à eleição, pelos seus pares, do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e dos Presidentes das Relações, sendo o Vice-Presidente do Conselho Superior Judiciário nomeado pelo Presidente da República, por proposta do primeiro Ministro e do Ministro da Justiça de entre os juízes do Supremo e das Relações.

 

É a partir deste momento que se dá início à discussão sobre os termos de um verdadeiro autogoverno da magistratura judicial, simultaneamente que emerge um associativismo sindical judiciário que durante os 50 anos seguintes vai ser um poderoso e prestigiado influencer na estruturação e na ação do poder judicial.

Desde logo, era necessário e urgente dar resposta à pergunta feita pelo então deputado constituinte Vital Moreira: se, numa sociedade política democrática, o poder político pertence ao povo, cabe então perguntar que legitimidade pode reivindicar um corpo de magistrados, que não só não depende, ou não é responsável pelo povo, como inclusivamente se coopta livremente.

Essa resposta foi dada com o alargamento das competências do agora denominado Conselho Superior da Magistratura e as alterações à sua composição, visando, por um lado, garantir uma real independência dos juízes, e por outro lado, conferir-lhes legitimidade democrática.

O Conselho Superior da Magistratura passou a ser a peça chave, capaz de posicionar os tribunais no difícil equilíbrio entre os diferentes poderes de um Estado de Direito Democrático.

Há ainda que lembrar que, mesmo antes da vigência da Constituição de 1976, foi aprovado um conjunto de medidas com forte impacto na mudança do sistema judicial, como sejam o acesso das mulheres à judicatura, a criação dos tribunais de júri e a reformulação das regras de ingresso na magistratura.

 

O segundo fator que reflexamente determinou a mudança profunda na ação dos tribunais foi a reforma generalizada de todo o ordenamento jurídico.

Aplicando os tribunais, na resolução dos litígios que lhe são submetidos, a lei, as profundas alterações que após o 25 de Abril se operaram por todo o nosso ordenamento jurídico, obedecendo a uma redefinição de princípios e valores, necessariamente ditaram uma alteração, também ela profunda, do direito aplicado pelos juízes à vida real.

Faço aqui, no entanto, uma ressalva importante.

Entre as peças raras da legislação do Estado Novo que ainda hoje sobrevivem e regem a nossa vida encontra-se o Código Civil de 1966.

Apesar das múltiplas modificações que sofreu, algumas de fundo e outras de mera conjuntura, este “monumento legislativo”, como o apelidou o atual Presidente da República, mantêm-se em vigor, apesar de, desde há alguns tempos, serem visíveis, sobretudo nas partes dedicadas ao direito das sucessões e das obrigações, as sérias dificuldades da sua aplicação acompanhar os novos interesses, realidades e valores da vida moderna.

São por isso urgentes obras de remodelação naquele que é considerado a maior realização da ciência jurídica portuguesa.

 

Mas foi, também, com a entrada de novos protagonistas que ocorreu uma revolução difusa, mas profunda, do sistema judiciário.

Nos outrora sombrios tribunais, templos de uma verdade menor de culto quase iniciático, nos anos 80 do século passado, entrou uma nova geração de magistrados que triplicou o número de juízes então existentes.

Era um bando de jovens saído dos bancos das faculdades para os cadeirões dos tribunais e traziam com eles todos os ideais e os sonhos que abril tinha permitido expressar.

Tinham conhecido o ambiente opressivo de uma ditadura.

Tinham acordado a meio da noite, a suar frio, antevendo a altura em que teriam que partir para a guerra colonial ou projetando o seu exílio numa Europa livre.

Tinham escrito a giz roubado dos quadros negros do liceu, a palavra liberdade, encobertos pela neblina noturna, num qualquer muro da cidade.

Tinham saído à rua, naquele dia inicial inteiro e limpo, prontos a serem protagonistas de uma nova vida.

Tinham sido realistas e exigido o impossível.

Era uma geração fortemente politizada, ideologicamente formada nos movimentos associativos estudantis, que agora chegava a uma recém-criada escola de magistrados aberta a homens e mulheres que queriam ser juízes.

Aí conheceram professores como Laborinho Lúcio que os alertou que um juiz deve ter mais mundos para além das leis e dos tribunais; Armando Leandro que lhes deu um exemplo da afabilidade, da sensibilidade e da bondade que também devem nortear o comportamento de um juiz; ou ainda Torres Paulo que lhes demonstrou que era possível recorrer aos grandes princípios normativos para descobrir soluções mais justas do que aquelas que o direito positivo aparentemente impõe.

Foi esta geração, com novos ideais e valores, mais aberta, mais atenta à realidade, com um forte sentimento de independência e liberdade, que viria a marcar o modo como se passou a fazer justiça em Portugal.

Essa mudança de protagonistas, conjuntamente com a mudança radical da estrutura de governo da magistratura e a alteração do ordenamento jurídico, levou a cabo uma bem sucedida democratização do poder judicial na penúltima década do século passado.

Hoje num discurso, com um olhar nostálgico sobre o passado, procurei demonstrar que a revolução de Abril 1974 mudou radicalmente a vida dos tribunais no momento apropriado e que as questões que se colocam ao poder judicial já não são as bandeiras de então, mas sim os desafios de uma sociedade global e tecnológica no final do primeiro quarto do século XXI, com rápidas mutações, numa permanente instabilidade e numa constante incerteza de um futuro envolto por uma névoa densa.

São essas questões que importa agora pensar e que eu comodamente deixei para que este Encontro de Juízes as debatesse.

Serei um ouvinte atento.

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