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XII Conferência do Fórum dos Presidentes dos Supremos Tribunais de Justiça dos Países e Territórios de Língua Portuguesa

13 Nov 2024

Aparentemente subvertendo o título do tema deste primeiro painel, nesta minha intervenção irei procurar demonstrar a tendência cada vez mais atual da mais alta instância do Poder judicial em Portugal – o Supremo Tribunal de Justiça – num número crescente de situações, mais do que realizar o direito ditado pelo poder legislativo legítimo, é ele mesmo quem define o conteúdo das normas que devem solucionar o caso controvertido.

Como referi num recente colóquio em matéria de direito civil, face à incapacidade de o poder legislativo acompanhar as rápidas mudanças sociais e tecnológicas, as decisões dos tribunais, embora proferidas em casos concretos, vão ganhando cada vez mais uma importância acrescida na definição do próprio direito que aplicam.

E o Supremo Tribunal de Justiça, pela seu posicionamento no vértice superior da pirâmide dos tribunais judiciais, funciona como uma bússola orientadora de toda a jurisprudência, neste tipo de decisões.

Na verdade, a par de um tradicional papel estabilizador, sendo dele a última palavra, o Supremo Tribunal de Justiça, cada vez mais vai-se assumindo como o grande protagonista da evolução dinâmica do direito.

Ao resolver disputas teóricas, solucionando casos da vida real, ao enfrentar novas problemáticas a aplicar legislação que já não reflete os sentimentos, nem os interesses prevalecentes da comunidade, o Supremo Tribunal de Justiça, através de uma atividade interpretativa e integradora, molda o conteúdo das regras, preenche vazios normativos e adapta as leis existentes às novas realidades.

Perante este desafiante papel, imposto pelas necessidades de um Estado de Direito surpreendido por um novo mundo e paralisado pelas sucessivas crises que o vão debilitando, não é possível escapar a um certo ativismo judiciário.

Vai fazendo algum sentido o entendimento de que verdadeiramente as leis são feitas pelos homens que as aplicam.

Com a instituição no século XVIII dos regimes liberais, é na concretização do princípio da separação de poderes que reside o segredo do equilíbrio harmónico de um Estado de Direito.

Desde sempre aprendemos que cada um dos diferentes poderes estaduais – legislativo, executivo e judicial – deve atuar de maneira independente e autónoma, mas em harmonia, evitando concentrações domínios e invasões de fronteiras, estabelecendo-se um cuidado sistema de “freios e contrapesos”.

Nesta estrutura modelar típica, o papel do Judiciário seria essencialmente o de aplicar o direito contido nas normas jurídicas criadas pelos órgãos dotados de poder legislativo.

Assim se cumpriria a função dos tribunais se limitarem a realizar o direito, aplicando o conteúdo abstrato das normas ao caso concreto, através de uma simples operação mecânica de subsunção.

No entanto, a realidade prática do judiciário, frequentemente, exige que os tribunais procedam à integração de normas quando o ordenamento existente é vago ou omisso, revelando-se insuficiente para solucionar o caso concreto através de uma simples operação de subsunção.

Nesses contextos exigentes, os tribunais exercem uma função integradora, aplicando o direito de forma a preencher lacunas ou a resolver insuficiências legislativas, independentemente delas resultarem ou não de uma opção deliberada do legislador.

Embora, não criem normas retiradas de um vazio jurídico, uma vez que terão que ter em conta as linhas de orientação traçadas pelo poder legislativo e os princípios gerais do direito, por ele também definidos, os tribunais, ao interpretar e ao integrar o direito positivo existente acabam por criar novas normas, preenchendo espaços livres do ordenamento jurídico numa atividade criativa autorizada pelo sistema.

E é o Supremo Tribunal de Justiça, sendo a mais alta instância do poder judicial, que nessas situações deve assumir esse papel criativo, sendo ele quem define um direito novo que é naturalmente seguido pelos tribunais hierarquicamente inferiores, conscientes que é o Supremo que detém a última e decisiva palavra.

Essa necessidade de proceder à definição do direito acontece a propósito das decisões proferidas em recurso em casos concretos, em que a aplicação do direito positivo não nos oferece uma solução adequada a uma resolução justa do litígio, revelando a legislação existente uma previsão ausente, insuficiente ou desadequada para regular a situação controvertida.

Desde logo, isso sucede quando ocorre uma lacuna da lei, em sentido estrito, ou seja, quando o direito positivo não contém a previsão de uma realidade atualmente existente, não a regulando.

Mas, esse vazio pode também resultar de uma interpretação ab-rogante de uma norma da qual não é possível extrair qualquer sentido útil, seja por esta se encontrar mal redigida, quer por ser incompreensível do ponto de vista linguístico, quer ainda por existirem conteúdos normativos insanavelmente contraditórios.

O mesmo sucede quando os tribunais no exercício de uma fiscalização difusa da constitucionalidade normativa, recusam a aplicação de uma determinada norma, por inconstitucionalidade, deixando o sistema jurídico sem soluções orientadoras para a resolução do caso concreto, face à recusa de aplicação da norma inconstitucional.

Igual situação pode ainda ocorrer quando os tribunais utilizam figuras expressamente previstas no ordenamento jurídico para afastarem a solução que resultaria de uma aplicação rígida do direito positivo, como seja o instituto do abuso de direito, o qual permite ao julgador paralisar o direito injusto.

Esta válvula de segurança fornecida pelo sistema exige do julgador a procura de uma solução justa para o caso concreto, a qual, igualmente, se traduz numa atividade criativa.

Sendo-lhe exigida uma solução justa para o caso, após ter determinado o afastamento da aplicação do direito abstratamente previsto pelo legislador, a essa solução, dirigida especificamente às particularidades do caso, preside quase sempre a criação da norma do caso, a qual é muitas vezes extensível a situações similares.

Pode-se ainda dizer que o julgador também cria e define o direito aplicável quando, numa operação interpretativa procede a uma redução teleológica de uma norma vigente, retirando da sua previsão uma realidade abrangida pelo seu âmbito.

Ao efetuar essa redução, aquela norma, face à sua amputação, não deixa de ser uma nova norma que é fruto da atividade criativa do julgador.

E, por fim, sem que se tenha a pretensão de termos esgotado todas as situações em que o julgador desenvolve uma atividade criativa no domínio da construção normativa, igual apelo ocorre perante a utilização pelo legislador de conceitos indeterminados que exigem uma concretização normativa.

A indeterminação de um conceito ocorre por polissemia, vaguidade, ambiguidade ou porosidade, podendo ser intencional, por corresponder a uma opção legislativa de deixar à doutrina e à jurisprudência o seu preenchimento, ou resultar de uma deficiência legislativa.

Essa indeterminação tem graus que dependem da impressividade das referências dadas ao julgador para proceder à concretização do conceito utilizado, numa operação criativa com um grande cunho retórico e argumentativo, visando afastar a suspeita de discricionariedade do julgador.

Em todas estas situações em que há um apelo irrecusável à produção normativa do julgador, os métodos criativos diferem consoante as necessidades.

Além das já aqui faladas reduções teleológicas, o artigo 10.º do Código Civil indica-nos o recurso à analogia e, na falta de caso análogo, a adoção da norma que o próprio julgador criaria, se houvesse de legislar segundo o espírito do sistema.

No raciocínio analógico, procura-se encontrar em lugares paralelos a norma que o legislador, agindo em coerência, teria previsto para o caso em discussão, e, quando não existem esses lugares paralelos, o julgador terá que adivinhar qual teria sido a opção legislativa, suprindo a ausência de manifestação da vontade do legislador.

O julgador, nesta sua atividade criativa, age, pois, como um “gestor de negócios” do legislador, na atividade da criação do direito, sendo, no entanto, as suas opções sempre fundadas nos critérios de justiça espelhados noutros espaços do ordenamento jurídico ou nos princípios gerais dominantes.

Não estamos, pois, perante um processo de livre criação do direito, sendo antes uma operação balizada e inspirada pelos sinais deixados pelo legislador e que decorrem da leitura sistemática do direito positivado e da obediência aos princípios gerais dominantes, podendo, por isso, afirmar-se, com segurança, que nestas situações, apesar de ser o julgador a definir o direito aplicável, não há qualquer afronta ao princípio da separação de poderes.

Conforme relembra Menezes Cordeiro:

Esta atividade criativa não é uma novidade.

Ela foi sempre praticada ao longo da História, com um forte pico no Direito Romano e na pandetística do século XIX.

Institutos inteiros foram desenvolvidos sem apoio na lei e à margem de qualquer interpretação minimamente plausível.

Basta pensar nos direitos de personalidade, nos pressupostos da responsabilidade civil ou na transmissão de obrigações.

A novidade residirá, porventura, numa maior auto-análise do método jurídico e numa melhor delimitação da interpretação e da integração.

Convém, aliás, realçar que, muitos dos resultados obtidos pela jurisprudência nestas suas tarefas criativas, acabam por, mais tarde, serem absorvidas pela lei, uma vez que o legislador recolhendo os frutos daquela atividade jurisprudencial, procede a reformas legislativas que os acolhem.

A título de exemplo, referimos institutos de origem jurisprudencial como a responsabilidade pré-contratual, a relevância negocial da alteração das circunstâncias ou o cumprimento defeituoso dos contratos.

Alerta-se, no entanto, que estas decisões em que o Supremo Tribunal de Justiça tem uma intervenção criativa devem, por regra, serem tomadas pelo Pleno dos juízes conselheiros da secção especializada na matéria a que respeitam.

Pela sua delicadeza, uma decisão criativa envolve cuidados e justificações que convocam o contributo de todos os juízes que compõem o Supremo Tribunal, especialistas na matéria em questão, de modo a reforçar o seu peso e credibilidade.

A falta de apoio da solução adotada no direito positivo deve ser compensada com o reforço da voz autorizada da instituição que a profere.

Por exemplo, no direito processual civil português, deve ser utilizada oficiosamente a figura do julgamento ampliado de revista previsto nos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil atual.

Nestas disposições, permite-se que perante a interposição de um recurso de revista comum, qualquer um dos três Conselheiros a quem foi distribuído o recurso, o Presidente da Secção Cível de que fazem parte esses juízes ou o Ministério Público requeiram ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que o julgamento do recurso se faça com a intervenção do Pleno das Secções Cíveis, quando tal se revele necessário ou conveniente para assegurar a uniformidade da jurisprudência.

É o que seguramente acontece nas situações em que o Tribunal tem que desenvolver uma atividade de criação normativa.

Resta-me dispensar uns últimos minutos aos Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência do Supremo tribunal de Justiça, anteriormente denominados Assentos e que tanta tinta fizeram correr sobre a sua constitucionalidade, face ao princípio da separação de poderes.

Em Portugal, os acórdãos de uniformização de jurisprudência desempenham um papel crucial no sistema judiciário.

Esses acórdãos são proferidos nos casos em que existam decisões contraditórias do Supremo Tribunal de Justiça sobre a mesma questão jurídica e têm a finalidade de harmonizar a interpretação das leis, promovendo a estabilidade e a previsibilidade nas decisões judiciais em todo o país.

Os acórdãos de uniformização de jurisprudência em Portugal contribuem para a eficiência do sistema judicial, ao minimizar a quantidade de recursos e o tempo de tramitação processual para questões já resolvidas, ajudando a reduzir a sobrecarga nos tribunais.

Mas os acórdãos de uniformização de jurisprudência, apesar de desempenharem um papel essencial na interpretação e aplicação do direito existente, não criam necessariamente direito, no sentido de inovarem ou criarem novas normas jurídicas.

Esses acórdãos têm apenas a função de esclarecer e consolidar o entendimento sobre normas já existentes que geraram interpretações divergentes dentro do próprio Supremo Tribunal, fornecendo uma orientação segura para os tribunais inferiores e para os operadores do direito.

A partir do momento em que uma questão é uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça, as decisões subsequentes devem seguir essa interpretação, o que leva à estabilização do entendimento jurisprudencial e promove a previsibilidade jurídica.

Esses acórdãos têm efeitos que se assemelham a uma “norma interpretativa”, dado que influenciam diretamente o modo como as leis serão aplicadas no futuro.

Eles atuam para reforçar o papel dos tribunais como intérpretes da lei, mas não como legisladores, uma vez que não criam normas novas, não se concordando com a afirmação de que por via de um acórdão uniformizador a norma interpretada sofre uma recomposição, sendo uma nova norma, recomposta, que passa a existir no direito positivo e que expulsa do ordenamento jurídico a norma criada pelo legislador.

Que assim não é, demonstra a solução apontada pelo Tribunal Constitucional para que os antigos Assentos não afrontassem o princípio da separação de poderes.

Conforme resulta do seu famoso acórdão 810/1993, para que os anteriores Assentos, atualmente convertidos em acórdãos de uniformização de jurisprudência, fossem conformes com a Constituição seria suficiente que a doutrina neles estabelecida apenas obrigasse os tribunais hierarquicamente subordinados ao Supremo Tribunal de Justiça e não a comunidade em geral, não tendo por isso o valor de um ato legislativo por não disporem de força obrigatória geral

O problema não residia, pois, no tipo de decisão proferida, designadamente no seu carater mais ou menos criativo, mas sim na sua força vinculativa.

Desde que a sua eficácia se restringisse ao âmbito dos tribunais hierarquicamente inferiores ao Supremo Tribunal de Justiça, revestindo a natureza de simples jurisprudência qualificada, eles nunca se poderiam equiparar a uma lei emitida pelos órgãos de soberania dotados de poderes legislativos, pelo que o princípio de separação de poderes não seria minimamente afetado.

É, pois, ao nível do seu âmbito vinculativo e não quanto ao seu conteúdo mais ou menos criativo que tais decisões podem suscitar dúvidas quanto à sua compatibilidade com o princípio da separação de poderes.

Esse é, ou melhor, foi uma diferente problemática daquela que hoje aqui tratámos – a do papel cada vez mais frequente da intervenção dos Supremos Tribunais na definição do próprio direito que aplicam.

Muito obrigado pela vossa atenção.

Lisboa, 13 de novembro de 2024

João Cura Mariano, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

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