Em dias salteados do semestre que acaba, páginas digitais anónimas do Diário da República, comunicaram que se encontravam desligados do serviço, antecipando, a vosso pedido, um momento que era inevitável.
Sem uma outra palavra, sem qualquer cerimonial ou outro gesto de reconhecimento, um Estado e uma sociedade indiferentes desligou-vos de uma vida de 40 anos.
Mas antes dela houve uma primeira vida.
Todos nascemos num dia e num lugar qualquer.
Deram-nos um nome e foi assim que ficou inaugurada em cada um, uma história original e verdadeira.
Na infância, aprendemos a andar e a falar, a fazer perguntas sobre o longe e o perto, o ser dia e o ser noite, o ser bom ou ruim, o estar triste ou estar contente.
Tudo o que precisávamos saber era aprendido em casa até o tempo passar e chegar a nossa vez de responder em escolas onde havia mais como nós.
Aí fomos sujeitos a perguntas, cujas respostas acertadas garantiam ser o segredo para se poder ter, lá mais para a frente, algum futuro.
Mas o presente, a ser constantemente ultrapassado, se não trazia depressa o futuro prometido, mudava-nos a idade e com ela vinha a descoberta de que em cada escolha o que escolhíamos nos estava a levar a um qualquer lado.
E um dia, sem sabermos bem porquê, quando chegou o tempo de decidir quem éramos, quisemos ser juízes.
Julgar e decidir sobre a vida dos outros.
Alguém tinha que o fazer.
Foi nesse momento que se iniciou a nossa segunda vida que ocupou a maior parte das nossas vidas.
E ao vestirmos aquele manto negro, com uns berloques para entretermos as mãos;
ao sentarmo-nos numa posição mais alta do que aqueles que julgávamos;
ao adotarmos uma postura mais sisuda;
ao sentirmos o peso de sermos um exemplo;
ao sermos o último a apagar a luz de um gabinete de um Palácio da Justiça, numa vila esquecida;
ao debruçarmo-nos sobre maços de papel atados com guitas à procura da verdade das coisas e do segredo da solução justa, tornámo-nos em quem somos.
Veio a primeira posse e outras se seguiram, numa sucessão de conveniência ou contragosto geográfico que somaram anos, perplexidades, surpresas, memórias e uma experiência que quando ganhou a forma de currículo abriu as portas dos Tribunais da Relação.
Aí fomos colocados a julgar e decidir através de fotografias de som e como ourives das palavras e conceitos.
Trabalhámos a matéria-prima das palavras de outros, alargámos o território exterior, comprimindo cada vez mais o nosso interior, quase reduzido aos horizontes do escritório das nossas casas.
Continuámos a interrogarmo-nos sobre o sentido do certo ou do errado, do verso e do reverso das coisas, como quase acontecia quando eramos crianças.
E, cumprindo o tempo em cada volta do calendário, desaguámos no mesmo lugar em que o Tejo vê o mar e se despede definitivamente da nascente, com o propósito de nos revelar que aqui é o fim do nosso longo percurso pelos interiores dos tribunais.
É a toda essa vossa segunda vida que hoje, neste último e supremo tribunal – como é dever de qualquer tribunal – se quis fazer justiça, agradecendo o terem sido, cada um à sua maneira, os juízes que foram.
Afonso Henrique, Pedro Lima Gonçalves, Ana Brito, Leonel Serôdio, Maria Amélia, José Luís, Leonor, Maria do Carmo, Vítor Pinto.
São todos esses quarenta anos das vossas vidas, dedicados às vidas dos outros, que aqui homenageamos e que queremos que saibam que não serão esquecidos.
É esse o significado do peso das medalhas que hoje vos foram entregues.
É essa a mensagem destas palavras escolhidas, propositadamente, sem o exagero dos adjetivos, nem a futilidade dos advérbios.
Muito obrigado, por tudo o que deram de vós.
Apesar do tom de despedida destas palavras, não estamos aqui para dizer adeus.
Os que partiram não nos deixaram e os que ficámos não vos perdemos.
Sem sabermos o dia de amanhã, o mundo continua a ser o nosso espaço de encontro, este Tribunal a nossa casa e esta comunidade jurídica a nossa gente.
Como escreveu Pessoa: Vivo sempre o presente. O futuro não o conheço. O passado já não o tenho.
Mas Pessoa não sabia que há sempre uma certeza – o almoço de Natal do STJ.
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