fundo

Intervenção na tomada de posse dos juízes do 37.º Curso de formação do CEJ

03 Set 2024

I – Cumprimentos

 

Hoje é um dia feliz e único.

Eu tenho o privilégio de abrir os portas dos tribunais ao futuro.

E trinta e oito juízas e juízes iniciam uma nova vida após longos e dedicados anos de preparação.

 

Depois deste salão nobre, com vista sobre o Terreiro do Paço, regressar ao seu sossego majestoso e do exemplar da tomada de posse, há momentos assinado, ficar esquecido numa qualquer gaveta, há que serpentear pelas curvas e contracurvas para se chegar a Torre de Moncorvo ou deslizar pela planície alentejana até Serpa ou sobrevoar o Atlântico Norte até pousar na Ilha Branca da Graciosa, depois de uma escala em Ponta Delgada.

Nesses lugares longínquos, onde se aguarda o render anual dos juízes, os pequenos tribunais que sobreviveram à fúria economicista da Troika, encontram-se localizados em povoações do interior e dos arquipélagos, onde, sem esperança, gente que foi ficando luta contra o abandono e o esquecimento ditados por um desenvolvimento impiedoso.

É nessas comunidades isoladas e gradualmente envelhecidas que, agora sem qualquer tutela, se irá começar a cumprir o juramento que acabaram de proferir – exercer o poder judicial, em nome do povo, aplicando a lei, com respeito pela Constituição.

Um poder judicial que nesses lugares continua a ser identificado pelos denominados Palácios da Justiça que se mantém, altivos e sérios, estrategicamente posicionados no centro da vila, indiferentes a uma crescente e lenta quietude que se vai instalando ao seu redor.

Conforme nos dá nota a leitura de um utilíssimo guia destes Tribunais, elaborado pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses, nesses Palácios não falta nem o espaço nem o tempo.

Os edifícios têm uma dimensão generosa e os números dos processos que entram e que se encontram pendentes permitem que os recém empossados os tratem com o cuidado e o período de reflexão necessários à sua resolução, em prazos adequados.

Ao contrário do espaço e do tempo, poderão faltar, em alguns casos, obras de conservação e beneficiação; revela-se difícil a substituição dos funcionários que atingem a idade da reforma; e, mais frequentemente, não existem os meios, nem os equipamentos necessários a uma eficaz e moderna administração da justiça.

Alienadas, em nome do combate ao défice e ao despesismo público, já não existem as tão convenientes casas de magistrados, as quais, reconheça-se, tinham uma dimensão própria de tempos longínquos em que os juízes habitualmente se instalavam com o seu agregado familiar no local onde exerciam funções.

Por isso, os atuais “juízes de fora” do século XXI têm que recorrer a um escasso mercado de arrendamento ou, mais frequentemente, a instalarem-se em acanhados quartos em alojamentos hoteleiros, fazendo face às consequentes despesas que, somadas às das suas deslocações semanais de e para a sua residência, reduzem drástica e perigosamente o valor da sua remuneração.

Este é um aspeto em que o Ministério da Justiça, em colaboração com as Câmaras Municipais, deverá intervir, sob pena de, justificadamente, alastrar uma indesejável justiça feita à distância, permitida pelas novas tecnologias.

 

Atrevo-me agora, sem qualquer nostalgia de tempos passados e ultrapassados e com consciência que arrisco quando discurso para uma geração distante, a dizer-vos algumas palavras sobre o exercício do poder judicial e a quem nele se inicia.

É natural que transportem a insegurança e a angústia de quem principia uma missão de delicado cumprimento e tão insólita quanto necessária.

Um dia, Laborinho Lúcio, antigo diretor do CEJ e influencer da geração de magistrados que atualmente se despede da vida dos tribunais, disse que os juízes são homens e mulheres vulgares colocados numa posição invulgar.

Não sei se essa vulgaridade não se vai esfumando e se ela não é disfarçadamente consumida pela invulgaridade de julgar os outros e os incidentes de uma vida em sociedade.

Tenho a perceção que, lentamente e sem sintomas visíveis, o hábito vai desconstruindo a pessoa e construindo o “monge”.

De qualquer modo, não se assustem com uma vertigem inicial, própria de quem se estreia num papel invulgar.

Convertam os medos numa adrenalina saudável que nos mantém atentos e concentrados.

Não ocultem a insegurança com comportamentos autoritários, nem se refugiem em formalismos que transferem para a letra da lei a responsabilidade por soluções injustas ou que multiplicam, agravam e eternizam o litígio cuja resolução se desejava.

Não se iludam com o também natural, mas contraditório, entusiasmo de quem se sente confiante com a longa preparação a que se dedicou, e não descurem avisadas preocupações e cautelas sensatas.

Nunca se deixem de questionar sobre a bondade das vossas atuações e decisões.

Nunca deixem de se colocar em causa e mudem comportamentos que uma auto-monitorização permanente justifique.

Com a amabilidade própria de uma companhia de viagem, procurem relacionar-se com os demais intervenientes judiciários.

Façam sempre do poder judicial uma força tranquila, compreensível e transparente.

Façam-no sem certezas nem perfis, no propósito de não se perder o objetivo da aproximação a uma ideia de justiça, utilizando, com sensibilidade, as armas, algumas vezes obsoletas, de um sistema jurídico localizado no espaço e no tempo.

Olhem as dificuldades, as incertezas e as angústias, como desafios e procurem superá-los, com criatividade.

Reproduzindo um pensamento que exprimi publicamente há muitos anos, essencial é não ficar fechado nos gabinetes ou nos écrans dos computadores e percorrer as avenidas largas e as ruas sujas da vida, para que no momento de decidir se ouça o silêncio e se veja na escuridão, num encontro solitário com uma consciência experimentada, mas em permanente atualização.

Neste próximo ano terão a singular oportunidade de exercer uma justiça de proximidade e personalizada.

Os destinatários, ou melhor, os credores beneficiários das vossas decisões, são cidadãos de uma comunidade local em que transitoriamente se inserem, e essas decisões são proferidas por um único juiz que se encontra perfeitamente identificado.

Deixem que este modo de administrar justiça se entranhe durante este ano e perdure na vossa vida profissional, para quando passarem a ser, numa infeliz designação legal, a juíza 5 ou o juiz 14 de um qualquer tribunal despersonalizado, não sejam meros funcionários anónimos, escondidos atrás de um computador, facilmente substituídos por uma emergente inteligência artificial.

Nunca se esqueçam que são titulares de um poder soberano, delegado pelo povo, e que esse poder deve ser exercido com o objetivo essencial a um Estado de Direito democrático de restaurar o equilíbrio desejado por uma sociedade em permanente evolução.

Preservem sempre a consciência da vossa condição invulgar.

 

 

Estas palavras, hoje por mim proferidas num tom e num ritmo próprio de quem dá conselhos, não tiveram essa pretensão.

São simples avisos à navegação com um suporte no passado e num olhar sobre o presente, mas sem qualquer garantia de validade no futuro.

Será a vossa atenção às novas realidades em acelerada mutação que ditarão o tempo que elas farão sentido na vossa memória.

Neste dia feliz e único, resta-me desejar-vos a melhor sorte e os maiores sucessos que serão também os das comunidades que em breve vos irão receber.

Desejo-vos um bom ano judicial.

 

Lisboa, 03 de setembro de 2024

João Cura Mariano, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

 

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