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Intervenção na tomada de Posse como Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

04 Jun 2024

Senhor Presidente da República, Excelência
Senhor Presidente da Assembleia da República, Excelência
Senhora Ministra da Justiça, por si e em representação do Senhor Primeiro-Ministro Excelência
Senhor Presidente do Tribunal Constitucional
Senhora Presidente do Supremo Tribunal Administrativo
Senhor Vice-Presidente do Tribunal de Contas, em representação do Senhor Presidente do Tribunal de Contas
Senhoras Juízas Conselheiras e Senhores Juízes Conselheiros
Ilustres convidados
Minhas Senhoras e Meus Senhores

I – Agradecimentos
Agradeço a presença de V.ª Ex.ª, Senhor Presidente da República, neste ato solene em que tomo posse perante as Juízas e os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça, assim dando um sinal inequívoco da atenção que dispensa ao poder judicial e do reconhecimento que a independência deste é um atributo inegociável.

Dirijo também um agradecimento sentido ao Senhor Conselheiro Henrique Araújo, cujo mandato como Presidente deste Tribunal cessou com este ato.
O seu desempenho, serenamente ativo, durante os últimos três anos ao leme desta instituição, foi fundamental na defesa do prestígio do Supremo Tribunal de Justiça, na organização da sua atividade e na qualidade da sua representação.
De uma forma clara e persistente, não se cansou, em inúmeras ocasiões, de alertar para a necessidade de serem adotadas medidas prioritárias para o bom funcionamento do poder judicial, cuja competência pertence aos poderes legislativo ou executivo.
É certo que esses alertas, apesar de terem sido escutados, não tiveram o devido acolhimento, mas isso não desmerece o seu autor, revelando apenas a inércia dos seus destinatários.
Deste resultado retira-se o ensinamento que os discursos não são suficientes para desencadear mudanças, importando iniciar e manter um diálogo construtivo e permanente com os demais órgãos de soberania.
Por tudo o que fez em prol da justiça, e foi muito, o nosso muito obrigado.

Aos meus Pares, Juízas e Juízes deste Supremo Tribunal, que me elegeram, responsabilizo-os pela escolha improvável que fizeram.
Decidiram optar por alguém que, com gosto visível, dedicou a sua vida profissional, a estudar, a pensar, a aplicar, a ensinar e a divulgar o direito, mas que nunca exerceu cargos nem quaisquer funções de direção, representação e governação no aparelho judicial.
Estou, por isso, consciente das dificuldades deste novo desafio a que me propus, e, por isso, conto com o vosso imprescindível contributo no exercício deste mandato tão cheio de incertezas.
Em todo o caso, assumo como principais desígnios uma participação ativa e colaborante na inadiável campanha de reformas na área da justiça e a adoção das medidas necessárias a garantir a qualidade da atividade jurisdicional do Supremo Tribunal de Justiça.

II – Crise na Justiça
Assumo funções como Presidente deste Tribunal num tempo em que a justiça, mais uma vez, volta a estar na crista da onda discursiva, sob o signo da crise e da desconfiança.
Se introduzirmos a expressão “crise da justiça” no motor de busca Google encontramos um sem número de livros, estudos, artigos de opinião, manifestos e notícias que, ao longo dos cinquenta anos da nossa democracia, ciclicamente, sobressaltam a comunidade.
Estas crises de credibilidade são habitualmente desencadeadas por epifenómenos que funcionam como detonadores de um alarme social, abalando a confiança em todo o sistema de justiça, apesar de circunscritos a eventos processuais circunstanciais e muitas vezes até estranhos ao funcionamento do aparelho judicial.
Importa, no entanto, distinguir as insuficiências e deficiências do sistema e as razões do acionamento desses detonadores, as quais, muitas vezes, são completamente alheias às necessidades de reabilitação e modernização do poder judicial.
Este fenómeno tem, no entanto, a utilidade de colocar a justiça na ordem do dia e promovê-la a uma prioridade.
Com o foco político na necessidade de gerir e debelar, primeiro uma crise financeira, depois uma pandemia, seguida de duas dissoluções da Assembleia da República, a reforma da justiça, ou melhor as reformas na justiça, têm sido deliberadamente evitadas, num tempo em que a realidade não espera.
Daí que se tenham acumulado um conjunto de medidas de reação às constantes e rápidas alterações na vida social e económica e às constantes inovações tecnológicas.
Com o tempo a deslizar ao ritmo da vertigem, só uma política de reformismo permanente permite que a legislação judiciária e processual acompanhe o evoluir social.
Há que ter consciência que a estabilidade é, por ora, uma meta inatingível, e que a instabilidade é a nova normalidade, na qual temos que aprender a viver.
Não é necessária uma reforma estrutural do poder judicial ou das relações de equilíbrio que este mantém com os restantes poderes do Estado.
Essa é uma harmoniosa construção constitucional que deve permanecer incólume como garante seguro de um Estado de Direito Democrático que queremos salvaguardar.
A urgência reside antes num conjunto de medidas sectoriais e pontuais, muitas delas nevrálgicas, que permitam que o sistema judicial responda eficazmente, o que também significa, atempadamente, a todas as novas exigências e desafios.
Limitar-me-ei, aqui, a fazer uma telegráfica referência às mais prementes.

III – As reformas
No topo das preocupações está a legislação que define o regime de ingresso nas magistraturas.
Desde há alguns anos que os elementos estatísticos dos respetivos concursos vêm revelando que a opção pela magistratura deixou de ser uma escolha profissional desejada, em geral, e sobretudo pelos estudantes que terminam os seus estudos académicos com boas classificações.
Chegou-se ao ponto de rutura das poucas vagas colocadas em concurso não serem preenchidas por não existirem candidatos com as condições mínimas para ingressarem na magistratura.
Essa dificuldade na seleção de juízes e Magistrados do Ministério Público, além das condições de exercício destas magistraturas não serem atrativas, tem a sua causa principal no anacronismo do regime legal do concurso de ingresso.
Há mais de um ano foi aprovado um Anteprojeto visando adaptar aquele regime legal aos anseios, motivações e dificuldades dos licenciados em direito nos dias de hoje.
Esse Anteprojeto foi aprovado, por consenso, no Conselho Geral do Centro de Estudos Judiciários, órgão onde se sentam representantes das diferentes magistraturas, da Ordem dos Advogados, da academia, do poder executivo e do poder legislativo.
Não se compreende, por isso, que, passado todo este tempo, o Anteprojeto ainda não se tenha convertido numa Proposta de Lei e dado entrada na Assembleia da República.

No processo penal os denominados Megaprocessos têm distorcido a perceção pública acerca da eficácia dos tribunais judiciais que apresentam uma duração média de processos findos globalmente positiva.
Se a existência destes processos de complexidade excecional constitui uma inevitabilidade decorrente do surgimento de uma criminalidade económico-financeira sofisticada, o seu efeito nefasto na erosão da confiança dos cidadãos no sistema de Justiça compromete todos os que intervêm na cadeia da criação e aplicação de leis com a obtenção de soluções de caráter inadiável.
Encontram-se já identificadas as alterações legislativas que contribuiriam para evitar o protelamento excessivo do desfecho destes processos e que têm subjacente uma finalidade de simplificação e de agilização processuais, sem que se sacrifique o núcleo essencial das garantias de defesa dos arguidos.
Tais alterações não poderão deixar, no entanto, de ser acompanhadas, nos momentos da investigação dos factos e do julgamento dos crimes, por medidas gestionárias robustas, a tomar proativamente por parte dos órgãos que governam as magistraturas, e que passam pela afetação de meios humanos, materiais e tecnológicos proporcionais à complexidade dos casos.

Importa ainda retomar a reforma do Código de Processo Civil, que ficou adiada com a penúltima dissolução do Parlamento, de forma, não só a solucionar as imperfeições genéticas deste diploma mas também a introduzir inovações simplificadores e aceleradoras da tramitação processual.

Para não perturbar o que é urgente e prioritário nada direi sobre a necessidade de reforma do nosso quase sexagenário Código Civil, nem de outros regimes substantivos que vão permanecendo vigentes, cada vez mais desfasados das novas realidades.

Mas as reformas na justiça não competem apenas aos outros.
A desconfiança na justiça resulta muitas vezes do desconhecimento e da incompreensão das suas formas de funcionamento.
Por isso é necessário que as decisões dos tribunais sejam estruturadas, fundamentadas e redigidas de uma forma clara, e que as mesmas, sempre que tenham ou devam ter repercussão pública, sejam comunicadas de modo a que a generalidade dos cidadãos as entendam.
Não se espere credibilidade sem transparência.
Este é um caminho que nos cabe a nós, juízes, fazer.
Temos que abandonar o estilo barroco das nossas decisões, a que nos conduziu uma cultura judiciária pretensiosa, e procurar, de uma forma simples e clara, sem quebra do rigor jurídico, aplicar o direito ao caso concreto de uma forma justa.
A linguagem clara é antes de mais uma manifestação da garantia constitucional de acesso ao Direito e à Justiça, constituindo uma dimensão do dever de fundamentação.
Uma decisão de difícil compreensão, seja pela linguagem usada, se for desnecessariamente complexa; seja pela extensão, se for desnecessariamente longa; seja pela forma, se for desnecessariamente labiríntica; é uma decisão menos transparente e que dificulta o seu escrutínio pela comunidade, comprometendo, sem boa razão, a realização da justiça.
Fazer justiça é também comunicá-la eficazmente.
Decisões mais claras, mais concisas, mais dirigidas à resolução do caso concreto são melhores decisões.
Este é um domínio importante em que há muita estrada para andar e somos nós juízes os viajantes.

IV – O Supremo Tribunal de Justiça
Importa agora dedicar uma breve, mas necessária atenção ao Supremo Tribunal de Justiça.
Há que ter bem presente que ele ocupa uma posição liderante na Justiça Portuguesa.
Como órgão de cúpula dos tribunais comuns, o seu ponderado e regular funcionamento são garantia da qualidade, da coerência e do prestígio da Justiça, atributos sem os quais se degrada o valor e a consistência de uma democracia.
Desde há algum tempo temos assistido à renovação contínua do quadro de juízes do Supremo Tribunal de Justiça, num ciclo de grande rotatividade, como consequência de sucessivos pedidos de jubilação.
As razões são conhecidas.
Por um lado, a idade tardia com que se ascende a este Tribunal e, por outro, o natural cansaço dos juízes, depois de longas permanências na 2ª instância, onde o número de recursos e o manifesto abuso do direito a impugnar a decisão da matéria de facto obriga a um labor desgastante.
Estes dois fatores contribuem para que a permanência dos juízes no Supremo Tribunal de Justiça seja muito breve, com o inevitável prejuízo para a qualidade e a coerência da jurisprudência.
É uma realidade com tendência a agravar-se, até ao limite do caricato, se nada for feito.
Corremos o risco previsível de o Supremo Tribunal de Justiça ser um Tribunal onde a quem ele ascende vem apenas entregar o seu pedido de jubilação.
O desejável rejuvenescimento do quadro de juízes conselheiros e uma maior permanência no exercício de funções só poderá ser alcançado, num prazo que se impõe que seja breve, com uma alteração legislativa às regras de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça que constam do Estatuto dos Magistrados Judiciais e, por isso, exigem a intervenção da Assembleia da República.
Importa também modificar o paradigma de intervenção do Supremo Tribunal de Justiça.
Este não pode continuar a funcionar como uma instância de recurso normal, num sistema de tripla jurisdição.
O tempo exigente das sociedades modernas não admite que a resolução de um conflito, por regra, aguarde a análise e a pronúncia de três instâncias distintas.
O Supremo Tribunal de Justiça deve, por isso, limitar a sua ação à relevantíssima tarefa de uniformização da jurisprudência e a emitir a última palavra nos casos em que a decisão revista um excecional relevo jurídico ou social.
É nessas situações que a pronúncia de uma voz liderante se justifica, conferindo segurança e estabilidade à jurisprudência.
E, para garantir a qualidade deste trabalho, deve este Tribunal estar dotado de um corpo de assessoria e apoio com a dimensão suficiente que permita aos juízes dispor do tempo e dos elementos necessários a uma salutar reflexão e discussão em coletivo, com vista a prolação de decisões maduramente pensadas.

V – Conclusão
Peço desculpa pela condução, num sightseeing relâmpago, pelo mundo dos tribunais, mas não pude deixar de começar por descrever a minha visão do estado da arte, aproveitando o momento em que, recorrendo a uma frase batida, este é o primeiro dia do resto da minha vida de juiz.

Muito obrigado pela vossa atenção.

Lisboa, 04 de junho de 2024

João Cura Mariano, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

 

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