Os Estados de Direito são hoje identificados como Estados em que os direitos fundamentais da pessoa humana são amplamente reconhecidos e protegidos, mesmo contra a regra democrática da prevalência da vontade das maiorias.
É esse o seu certificado de qualidade e grau civilizacional, sendo exibido como princípio orientador basilar a dignidade da pessoa humana.
Mas, num mundo em que os desafios de ordem política, social, económica, ambiental, tecnológica e ética se vão avolumando, o risco dos direitos individuais serem esmagados pela dimensão e o peso dos interesses coletivos dominantes é iminente.
Daí que a simples proclamação ou previsão legislativa dos direitos fundamentais da pessoa humana nos espaços nobres dos ordenamentos jurídicos e a regulamentação do seu exercício dispersa pela legislação ordinária não seja suficiente para garantir uma proteção eficaz.
A nossa Constituição dedica uma extensa parte do seu texto à enunciação dos direitos fundamentais, ressalvando no seu artigo 16.º que os direitos nela previstos não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional, todos eles sendo merecedores de tutela.
Na legislação ordinária, em que sobressai no Código Civil o capítulo dedicado aos direitos de personalidade, os direitos fundamentais encontram-se muitas vezes densificados e o seu exercício é regulado, encontrando-se aí muitas das medidas que procuram obter a sua realização prática.
No entanto, esta intervenção do poder legislativo não dispensa a função jurisdicional de efetuar uma efetiva e concreta proteção aos direitos fundamentais, não se resumindo as funções dos tribunais comuns a uma simples aplicação do direito positivo criado pelo legislador ordinário.
O facto de competir ao legislador, democraticamente credenciado, a promoção e a previsão dos direitos fundamentais individuais, não dispensa os tribunais de, agindo na realidade, garantir uma proteção efetiva, para além da mera aplicação da legislação ordinária, sem que possam ser acusados de um qualquer ativismo judiciário.
Estando nós perante direitos constitucionais, coloca-se, contudo, a questão de saber a que tribunal ou a que tribunais é cometida esta importante função.
Relembra-se que a fiscalização da constitucionalidade se encontra desenhada entre nós seguindo um modelo híbrido de escrutínio, em que se combinam elementos do sistema norte-americano de controle difuso e do modelo austríaco de controle concentrado.
Se todos os juízes dos tribunais comuns não deixam de ser juízes constitucionais, tendo o encargo de fiscalizar o cumprimento da Constituição e, por isso, de zelar por um efetivo exercício e proteção dos direitos fundamentais, ao Tribunal Constitucional, num escrutínio exclusivamente normativo, compete especificamente verificar e decidir da compatibilidade da lei com a Constituição, designadamente verificar se o legislador ordinário respeitou e protegeu suficientemente os direitos fundamentais na sua atividade de criação normativa.
No entanto, contrariamente ao que ocorre noutros sistemas de fiscalização da constitucionalidade concentrada, entre nós, não se atribuiu ao Tribunal Constitucional competência para fiscalizar a constitucionalidade dos atos administrativos e das decisões judiciais, através da consagração do denominado recurso de amparo ou da queixa.
O Tribunal Constitucional pode controlar, nos recursos de fiscalização concreta, os juízos de inconstitucionalidade normativa efetuados pelos tribunais comuns, ou a constitucionalidade das normas ou interpretações normativas assumidas como fundamento das decisões judiciais, mas não pode controlar a constitucionalidade do sentido dessas decisões.
Como já demos nota os poderes atribuídos ao Tribunal Constitucional limitam-se à realização de um controle normativo.
Só normas ou interpretações com uma dimensão normativa poderão ser objeto do olhar e do juízo qualificado do Tribunal Constitucional.
Esta opção, compreensível, visou, por um lado, racionalizar a atividade deste tribunal qualificado, poupando-o à apreciação de um previsível número incontável de recursos que prejudicariam seriamente a qualidade e a celeridade da sua intervenção, submergindo-o no tráfego intenso de uma quarta instância de recurso, com um inevitável prejuízo para o tempo de duração dos processos judiciais.
Por outro lado, tal opção não deixou de se preocupar, avisadamente, com as relações entre os tribunais comuns e o Tribunal Constitucional, procurando evitar que este se transformasse num censor das opções decisórias daqueles, o que seria uma fonte potencial de um relacionamento conflituoso com a consequente descredibilização do poder judicial.
A experiência vivida em alguns dos sistemas que acolheram este tipo de recurso para o Tribunal Constitucional é um aviso claro que esta opção revelou uma prudência justificada.
Mas isso não significa que no nosso modelo de fiscalização da constitucionalidade aquelas que são consideradas as mais significativas e habituais violações dos direitos fundamentais fiquem sem a previsão de uma qualquer tutela, desmentindo uma crítica habitual feita pelos mais acérrimos defensores da consagração do recurso constitucional de amparo.
A circunstância do Tribunal Constitucional ficar à margem das inconstitucionalidades que não sejam verificáveis em normas emitidas pelo poder legislativo ou resultantes da atividade interpretativa dos tribunais não significa uma automática ausência de tutela dos direitos fundamentais de atos não normativos.
Relembramos que o nosso sistema de controle da constitucionalidade atua por duas vias distintas e que o facto do Tribunal Constitucional se encontrar despido dessa competência não deixa de se manter operacional o sistema de controle difuso, tendo sido aos tribunais comuns que o legislador constituinte confiou essa importante tarefa.
É certo que isso não é muitas vezes reconhecido pelos tribunais judiciais, os quais influenciados pela leitura dos acórdãos do Tribunal Constitucional e ignorando, indesculpavelmente, a distinção entre os âmbitos de intervenção da fiscalização concentrada e da fiscalização difusa, recusam assumir essa tutela com o argumento de que também os tribunais comuns só têm competência para a fiscalização normativa, chegando ao ponto de justificar essa recusa com citações dos acórdãos do Tribunal Constitucional.
E, para nosso espanto, encontramos esta visão em decisões de todas as instâncias, incluindo do Supremo Tribunal de Justiça, as quais se vão replicando de acórdão para acórdão, com citações dos anteriores, num fenómeno de imitação acrítica tão caraterístico da nossa jurisprudência.
Esta jurisprudência é fator de um défice de proteção aos direitos fundamentais, assim dando força aos entusiastas da necessidade da criação de um recurso de amparo para o Tribunal Constitucional.
Na verdade, se a limitação à fiscalização da constitucionalidade normativa é válida, relativamente ao controle de constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional, face à inexistência no nosso sistema do denominado “recurso de amparo”, o mesmo argumento já não é aplicável à fiscalização difusa da constitucionalidade que a própria Constituição atribui aos tribunais comuns.
Se assim não fosse, os direitos fundamentais ficariam efetivamente desprovidos de uma qualquer tutela face a atos praticados pelo poder político, pela administração ou pelos tribunais, e até ações de particulares.
Efetivamente, se o sistema português de fiscalização da constitucionalidade já é objeto de críticas por não admitir que o Tribunal Constitucional intervenha em matéria de direitos fundamentais, quando a sua violação não é imputada a uma norma jurídica, considerando-se existir, por essa razão, uma insuficiência de proteção qualificada dos direitos fundamentais, o entendimento de que também os tribunais comuns não poderiam efetuar essa fiscalização, nomeadamente em sede de recurso, deixaria sem qualquer controle, a violação daqueles direitos, designadamente quando a mesma decorre de decisões judiciais, o que seria de todo inadmissível num Estado de direito democrático como o nosso.
Aos tribunais comuns não só lhes compete recusar a aplicação das normas emitidas pelo poder legislativo ou da interpretação que delas é feita, nos termos do art.º 204º da Constituição, mas também, conforme lhes impõe o disposto no artigo 202.º da Constituição, devem recusar soluções para os litígios que lhes sejam colocados que resultariam numa violação desproporcionada de direitos fundamentais assim como, em fase de recurso, devem fiscalizar o respeito desses direitos pelas decisões recorridas.
É este controle difuso que garante o funcionamento de um sistema de tutela efetiva e completa dos direitos fundamentais.
Daí que o Tribunal Constitucional, em muitos dos seus acórdãos, quando verifica a constitucionalidade de normas que restringem o direito ao recurso, alerte para a necessidade de a ordem jurídica processual dever sempre assegurar o direito ao recurso nos tribunais comuns naquelas situações em que a violação de direitos fundamentais é imputada às próprias decisões judiciais recorridas.
É essa a grande responsabilidade atribuída aos juízes dos tribunais comuns na proteção dos direitos fundamentais.
É a eles e só a eles que foi confiada a tarefa de zelar que o conteúdo das decisões que proferem não viola direitos fundamentais e, em sede de recurso, verificar que o mesmo não sucede com as decisões recorridas, podendo esse ser um motivo oficioso da sua revogação.
Um dos campos em que esta intervenção ganha especial acuidade ocorre nas situações em que a legislação revela um défice de proteção a determinados direitos fundamentais, o que ocorre frequentemente com os direitos de última geração.
Cumpre ao legislador ordinário a escolha e a previsão dos meios de tutela dos direitos fundamentais, desde a arma mais poderosa que constitui a criminalização dos comportamentos violadores desses direitos, até meios simplesmente dissuasores ou inibitórios, passando pelo recurso à responsabilidade civil como forma de ressarcir o titular do direito violado dos danos suportados.
Perante lesões consumadas, a responsabilidade civil é o instituto por excelência para assegurar a proteção possível aos direitos fundamentais, cumulada ou não com a criminalização das condutas violadoras desses direitos.
Constituindo missão do Estado de direito democrático a proteção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça, colhe-se do artigo 2.º da Constituição um direito geral à reparação dos danos.
A responsabilidade civil impõe ao lesante a reconstituição da situação que existiria caso o ato ofensivo não tivesse ocorrido, ou não sendo possível essa reconstituição, o pagamento de uma indemnização em dinheiro compensatória do prejuízo sofrido.
Note-se que se a função ressarcitória assume fundamental importância no instituto da responsabilidade civil na nossa ordem jurídica, não deixa também de estar presente neste instituto uma função preventiva, em articulação com a finalidade reparadora, assumindo muitas vezes, sobretudo nos danos não patrimoniais, a indemnização uma natureza mista de compensação e punição.
Acentue-se ainda, por fim, que nessa importante função de proteção dos direitos fundamentais, na deteção da sua violação se aplicam alguns dos critérios que vigoram na fiscalização da constitucionalidade das normas, designadamente os juízos de proporcionalidade.
Foi minha intenção com esta curta e sintética intervenção chamar-vos a atenção, enquanto aprendizes de magistrados, à importância que um dia irão ter como guardas pretorianos dos direitos fundamentais.
Nunca a esqueçam.
Lisboa, 8 de janeiro de 2025
João Cura Mariano, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
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