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Discurso encerramento do 40.º Curso de Formação de Magistrado e do 10.º Curso dos TAF

12 Jul 2024

Há 41 anos eu estava sentado numa das últimas filas de cadeiras nesta sala que, na altura, tinha uma disposição inversa à atual.

Era um auditor de justiça do 2.º Curso Normal do CEJ.

À nossa frente, para lá do então Ministro da Justiça, Dr. Rui Machete, e do Diretor do CEJ, Dr. Laborinho Lúcio, escondida pelos muros altos do Limoeiro, estava uma rua, sem turistas

Eu pertencia a uma geração de jovens auditores de justiça que nos anos 80 do século passado, saída dos bancos das faculdades, alterou radicalmente o perfil da magistratura portuguesa.

Quando se percebeu que os cerca de 300 juízes que existiam no dia 25 de Abril de 1974 eram manifestamente insuficientes para dar resposta às exigências de justiça num país finalmente livre e democrático, iniciou-se uma política de acelerado recrutamento e formação de magistrados.

Em escassos anos, o número de juízes triplicou e é essa geração que, agora, passados 40 anos, se despede, em massa, da vida dos tribunais, sendo previsível que nos próximos 8 anos se reformem cerca de 600 juízes.

Numa repetição da história, agora injustificada, porque a realidade era previsível, teremos novamente que, apressadamente, proceder a uma substituição de grande parte da magistratura portuguesa.

 

 

E a primeira realidade alarmante que salta aos olhos, neste processo de renovação já em marcha, é a do número de candidatos que se predispôs a preencher as vagas disponíveis nos mais recentes concursos para ingresso nas diferentes magistraturas.

Enquanto no meu curso, para as 60 vagas abertas, se apresentaram cerca de 2500 candidatos, neste quadragésimo curso para os tribunais judiciais, para 104 vagas, os candidatos foram apenas 523.

Esta demonstração objetiva de ausência de interesse no exercício das funções judiciais não só impede um bom processo de seleção, como afeta a democraticidade do processo de escolha dos juízes e, consequentemente, a legitimidade dos titulares do poder judicial.

As causas deste fenómeno são de diferente natureza, mas a sua maioria reside no anacrónico regime legal de acesso ao CEJ.

Como exemplo, vou contar-vos o que aconteceu ao Manuel.

O Manuel completou, com excelentes notas, o seu curso de direito numa universidade pública.

No último ano do curso, motivado pelas palavras elogiosas do seu professor de Processo Civil, que nele descobriu uma vocação para ser magistrado, decidiu que esse poderia ser o seu futuro.

Inscreveu-se num curso de mestrado forense que o ocupou durante dois anos e onde obteve elevada classificação.

Depois, teve que aguardar uns longos meses para, nos primeiros dias do ano de 2023, ler um aviso, publicitando a abertura de um curso no CEJ para formação de magistrados – o 40.º – o qual apenas se iniciaria em Setembro de 2023.

A leitura desse extenso anúncio que ocupava 25 páginas do Diário da República assustou-o.

Em fevereiro teria que realizar três provas escritas, sendo que a matéria anunciada das provas de direito civil e de direito penal, apesar de se encontrarem repartidas por diversos temas, quase que esgotavam esses ramos do direito.

Grande parte delas não constavam dos programas curriculares das faculdades.

A título de bibliografia, além de 24 e.books, o aviso recomendava o estudo de cerca de 70 obras de referência para as provas de direito civil e direito penal.

Se, em qualquer um dos três exames escritos, tivesse uma nota inferior a 10 estaria excluído.

Ultrapassada esta primeira fase, seguir-se-ia uma bateria de exames orais, em temas tão distintos como direito civil, processual civil, comercial, penal, processual penal, constitucional, direito da União Europeia e organização judiciária.

E, talvez para testar a fortuna e a capacidade de improvisação dos candidatos, 48 horas antes desta maratona de provas orais, seria ainda sorteada uma prova extra que poderia recair sobre temas tão diversos como direito administrativo, direito económico, direito da família e das crianças e direito do trabalho.

Para poder enfrentar, sozinho, 11 membros de um júri composto por juízes, procuradores, professores universitários e advogados, recomendava-se a consulta de mais uma centena de obras.

Manuel, quando terminou de ler e reler este aviso, começou a duvidar da bondade dos conselhos do seu professor de Processo Civil e a temer pelo desfecho da caminhada que decidira iniciar.

 

 

No entanto, como já tinha investido três anos da sua vida neste projeto, não estava em condições de desistir. Faltavam agora mais 9 meses para, finalmente, poder ingressar no CEJ.

Estudou o que o tempo lhe permitiu e com a intranquilidade própria de um bom aluno que, pela primeira vez, vai para um exame muito longe de dominar a maior parte das matérias cujo conhecimento lhe pode ser exigido, nuns dias sombrios de fevereiro, acompanhado de uma mala de viagem cheia de livros, procurou resolver os casos práticos aleatórios que lhe foram colocados.

Na roleta russa dos exames escritos ocorreu a tragédia.

Na prova de direito civil, por pouco não obteve o almejado 10, o que foi suficiente para que o sistema, sem mais, concluísse que o Manuel não reunia as condições para ser magistrado e, por isso, não se encontra hoje neste auditório.

O Manuel, com outro nome, não é uma personagem de ficção e o professor de Processo Civil é o narrador desta história da vida real.

Além de outros fatores, que o tempo deste discurso não permite agora abordar, é a previsibilidade da repetição desta história que tem vindo a afastar muitos jovens recém-formados pelas nossas faculdades dos concursos de ingresso na magistratura.

Somado às condições pouco atrativas do exercício das funções, o longo e árduo caminho, com um final aleatório, exigido para o seu acesso, é um fortíssimo desincentivo a quem um dia lhe tenha surgido a ideia de ser juiz.

Aos que hoje me ouvem neste auditório e que, com melhor sorte, foram companheiros solitários da aventura do Manuel, admiro-vos a coragem, a resiliência, o empenho e o espírito de sacrifício que foi necessário para hoje estarem aqui.

Tais qualidades foram também necessárias para que tenham concluído com sucesso a exigente primeira parte da vossa formação, com o apoio de uma exígua bolsa, manifestamente insuficiente para sequer cobrir as despesas básicas de quem que não reside em Lisboa.

Estou seguro que, somadas a outras aptidões, irão agora enfrentar com sucesso a segunda parte da vossa formação, em que se exige uma particular atenção ao desempenho dos vossos formadores nos tribunais e um treino intenso nas funções que irão futuramente assumir.

Apesar desta mensagem de esperança, o que se passou convosco e com o Manuel não se pode voltar a repetir, uma vez que é uma escolha democrática e a consequente legitimidade dos titulares de um poder soberano que está em causa.

 

Existe um Anteprojeto de alterações à Lei que rege o ingresso nas magistraturas aprovado, por consenso, no Conselho Geral do CEJ, órgão onde se sentam representantes das diferentes magistraturas, da Ordem dos Advogados, da academia, do poder executivo e do poder legislativo.

Esse Anteprojeto, entregue há mais de um ano no Ministério da Justiça, apesar de não conter todas as soluções necessárias a um rápido e eficaz método de seleção, é uma boa base de trabalho para que o Governo apresente à Assembleia da República a respetiva proposta de lei.

Essa apresentação deve ser feita num espaço de tempo que permita que a abertura do próximo concurso, a ocorrer nos primeiros dias de Janeiro de 2025, se faça com novas regras.

A reforma da justiça de que tantos hoje falam passa por um conjunto de atualizações de legislação obsoleta.

Esta é uma delas, e uma das mais importantes, e o seu adiamento comprometerá o futuro da magistratura portuguesa.

Muito obrigado pela vossa atenção.

 

Lisboa, 12 de julho de 2024

João Cura Mariano, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

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