O COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
– Senhora Ministra da Justiça
– Senhora Ministra da Administração Interna
– Senhora Ministra da Juventude e Modernização
– Senhor Procurador-Geral da República
– Senhora Provedora da Justiça
– Senhor Presidente da Câmara Municipal de Cascais
– Distintos Oradores Convidados
– Minhas Senhoras e Meus Senhores
Hoje é o dia em que se relembra o combate em curso contra a violência doméstica.
É um combate relativamente recente, travado em circunstâncias difíceis, sem tréguas e sem fim à vista, contra um inimigo calejado por vivências de séculos, escondido na intimidade da família, disfarçado por um juízo de normalidade, camuflado numa paisagem de afetos e protegido por um sentimento de impunidade.
Se uma redefinição dos papeis de género na sociedade e a consolidação dos direitos humanos conferem consistência política e discursiva a esta luta, há que ter consciência que não é fácil empreender uma mutação civilizacional.
Estamos do lado certo da história, mas é contra o peso da história que lutamos.
Sabemos que é esta é uma guerra que temos que travar, mas isso está muito longe de ser suficiente para a ganhar.
Por muito que a velocidade dos tempos possa hoje ser uma importante ajuda, acelerando mudanças, destronando hábitos enraizados e revolucionando relações sociais, não podemos descurar que as causas da violência doméstica têm raízes profundas, tentaculares e subterrâneas.
O que me proponho hoje aqui fazer é apenas trazer-vos notícias da linha da frente, num sightseeing pelos combates diários que nestes dias se travam nos tribunais criminais.
Utilizando os utilíssimos dados estatísticos da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, constatamos que este é atualmente o crime com o maior número de denúncias.
O número de ocorrências participadas em 2023 foi superior a 30 000 e em 2024 já vai para além dos 23 000.
Esta é uma importante mudança no modo como as vítimas encaram a sua dura realidade.
O número de processos julgados por crimes de violência doméstica não tem parado de aumentar, sendo atualmente um dos tipos de crime dominantes nos nossos Tribunais.
No ano 2022 foram julgados 3 364 processos-crime por violência doméstica e em 2023 foram a julgamento 3 452 arguidos acusados deste crime.
O número de arguidos a aguardar julgamento em prisão preventiva tem aumentado exponencialmente.
Enquanto no 4º trimestre de 2018 existiam cerca de 112 detidos preventivamente por este crime, no terceiro trimestre de 2024 já eram 342 os arguidos a aguardar julgamento em prisão preventiva.
O mesmo sucedeu com o número de condenações em penas de prisão efetiva, encontrando-se atualmente a cumprir pena por crime de violência doméstica um número médio que ronda os 1000 reclusos.
Esta resposta impressiva e massiva do sistema penal, não tem, contudo, surtido um efeito visível na diminuição do fenómeno criminal, nem mesmo no número de vítimas mortais.
É certo que temos uma reserva de cifras negras capaz de alimentar continuamente os números estatísticos deste tipo de crime durante muitos e longos anos.
No entanto, o cenário revela claramente a dificuldade de dar uma resposta eficaz a um inimigo através de um sistema judicial desacompanhado de outras medidas e leva-nos a todos a questionar o que mais podemos fazer.
A Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, que estabeleceu o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica constitui, de uma forma geral, uma ferramenta legislativa muito completa e bem concebida, para efeitos de aplicação de medidas de coação e de proteção às vítimas de crime de violência doméstica.
O tipo legal de crime introduzido no Código Penal de 1982, tem vindo a ser sucessivamente retocado por diversas reformas legislativas, de modo a que não escapem às exigências dos princípios da tipicidade e da legalidade as mais diferentes formas de manifestação da violência e as mais diversas relações de convivência próxima que na sociedade moderna se vão constituindo.
Quando falamos de violência doméstica ou da violência contra as mulheres temos de ter presente que esta é uma criminalidade com características muito diversas dos demais tipos de crime.
A violência doméstica é um fenómeno complexo no qual confluem fatores psicológicos, emocionais, sociais e económicos e assenta em estereótipos de género e preconceitos existentes há séculos na sociedade.
É preciso olhar para este tipo de crime numa abordagem muito própria, impondo a cada caso um acompanhamento multidisciplinar adaptado às circunstâncias concretas e que seja contínuo, ou seja, que atue desde a notícia do crime até ao julgamento e após a condenação.
Desde logo, a intervenção dos tribunais é, em muitos casos, limitada pela relação de dependência entre a vítima e o arguido, fenómeno usualmente designado por “ciclo da violência” e que é muito difícil de interromper.
Por outro lado, a tecnologia todos os dias abre portas a novas dimensões de abuso e violência, pois assistimos, atualmente, a um controlo da vítima através de aplicações de rastreamento, de localização, de redes sociais, e à divulgação de imagens íntimas e de assédio virtual.
O espaço digital tornou-se uma extensão do ciclo de violência psicológica que não podemos ignorar e que cada dia ganha um maior relevo neste tipo de crime.
No julgamento destas condutas não é possível deixar de ter em atenção todos os fatores que favorecem este tipo de atividade criminosa.
Assim, às situações de dependência emocional e de vulnerabilidade da vítima estão frequentemente interligados outros fatores de risco como:
– baixos níveis de escolaridade;
– a anterior exposição a violência familiar;
– o consumo de álcool ou dependência de substâncias psicotrópicas;
– os diferentes padrões culturais de comunidades migrantes;
– as crenças sociais relativamente à desigualdade entre os géneros;
– uma desadequada idealização do conceito de família;
– e a aceitação da violência contra as mulheres.
Neste contexto complexo e perante estas múltiplas realidades a ameaça da pena de prisão não tem força para, só por si, funcionar como dissuasor da prática do crime, mesmo quando é aplicada uma pena de prisão efetiva, não sendo solução um agravamento das molduras penais.
A imposição judicial de medidas de coação e a ameaça da pena na condenação, ou mesmo o cumprimento efetivo da pena, não são eficazes se a vítima e o arguido não forem afastados e acompanhados.
Em cada caso é preciso avaliar e disponibilizar as medidas de apoio psicológico, terapêutico, social e económico necessárias que garantam um ponto final no ciclo de violência.
O tribunal criminal, ao dispor da arma mais restritiva dos direitos individuais, é o “fim da linha” e a sua intervenção está vinculada às regras do processo penal, decorrendo as diligências com o distanciamento que tem de existir entre o julgador, o arguido e as vítimas.
Mas, diariamente, os tribunais são confrontados com a necessidade destas receberem apoio psicológico e económico, o que vai muito além do âmbito do processo judicial e das competências dos tribunais.
As vítimas querem acreditar que podem sair daquele “pesadelo”, mas em muitos casos, não querem ver o arguido preso e é por terem receio dessa ser a consequência das suas declarações que muitas vezes não colaboram com o tribunal na audiência de julgamento.
O Conselho Superior da Magistratura, consciente que nesta fase é essencial monitorizar todas as medidas e planos de combate aprovados e que se encontram em execução, instituiu, em 2018, o Observatório Judicial da Violência de Género e Doméstica, atualmente constituído por mais de 30 responsáveis da área da justiça e do sistema judicial
A sua função primordial é recolher sentenças transitadas em julgado para efeitos de análise.
Este Observatório identificou nas decisões proferidas pelos tribunais de 1.ª instância, as seguintes fragilidades:
– Insuficiência de fundamentação, em casos de concurso de crimes, de suspensão da pena de prisão;
– Desqualificação frequente do crime de violência doméstica;
– Ausência de punição como crime autónomo de atos praticados pelos progenitores contra os seus filhos;
– Ausência de concretização da noção de “relação de namoro”;
– Ausência de rigor na densificação do conceito “maus-tratos”;
– Silêncio da vítima na ausência de outra prova.
A estas insuficiências, necessitadas de políticas judiciais corretivas, podemos ainda aditar:
– As dúvidas sobre a validade da tomada das declarações para memória futura por parte da vítima, quando o agressor ainda não se encontra constituído arguido, não sabendo da denúncia apresentada;
– Uma deficiente sensibilidade para a valoração da prova indireta;
– A inclusão de condutas de diminuta gravidade numa moldura penal com um mínimo elevado.
– A necessidade de se estabelecer uma comunicação entre todos os processos que muitas vezes respeitam à relação vítima-agressor, como sejam os processos em que se discutem responsabilidades parentais;
– O acerto na construção da medida da pena que se revele a mais eficaz para colocar um ponto final num ciclo de violência.
– Um tratamento processual diferenciado para os casos mais urgentes.
– A necessidade de os juízes deverem despir-se de preconceitos e afastar estereótipos, conscientes do quanto estes podem interferir na sua imparcialidade e objetividade, abstendo-se de afirmações dúbias, impróprias na condução do julgamento e nas suas decisões, reveladoras de algum juízo pessoal ou subjetivo, devendo restringir-se à apreciação dos factos, sem considerações pessoais.
No entanto, temos que aceitar que os desafios futuros neste combate vão muito para além da intervenção pura, mesmo que dura, dos tribunais criminais, e sobretudo, que ter a noção que a violência no seio das relações próximas e familiares apenas reflete exponencialmente os índices de violência da sociedade onde elas se inserem e vivem.
O combate é um combate global e tem como objetivo um avanço civilizacional.
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