A Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa teve a feliz ideia de organizar este Colóquio com a finalidade de fomentar o diálogo entre juristas ibéricos sobre a proposta de modernização do Código Civil Espanhol ao nível do direito das obrigações, mais especificamente no domínio contratual.
Essa reforma setorial incide sobre os títulos I e II do Livro IV de um Código Civil com mais de um século de existência, cujas disposições apenas foram objeto, durante todo este tempo, de alterações de pormenor.
A Primeira Secção da Comissão Geral de Codificação, que presta assessoria ao Ministro da Justiça Espanhol, elaborou uma primeira proposta de modernização daquela parte do Código Civil em 2009.
Esse primeiro Projeto visou, sobretudo, incorporar o conteúdo normativo de textos elaborados por diversas instâncias supranacionais, designadamente direito da união europeia, que já vigoravam no direito interno espanhol.
Há um par de anos, o Ministro da Justiça Espanhol solicitou à referida Comissão uma atualização da proposta de 2009, face a nova legislação extravagante que, entretanto, havia entrado em vigor, e que tivesse em consideração as evoluções registadas em matéria de direito das obrigações ocorridas noutros ordenamentos jurídicos europeus.
Apesar da reforma do BGB já ter ocorrido em 2001, a do Código Civil Francês só terminou em 2016, e em 2019 foi aprovado um novo Código Civil Belga, tendo o Livro dedicado às Obrigações, neste último diploma, sido publicado em 2022 e entrado em vigor em 1 de janeiro de 2023.
Além disso, o texto da Proposta de 2009 tinha suscitado uma série de reações que importava tomar em consideração e refletir numa nova Proposta.
Ainda no ano de 2023 a Primeira Secção da Comissão Geral de Codificação apresentou um novo texto que nas suas palavras preambulares anuncia que não só procedeu a atualizações da proposta de 2009, como nela introduziu alterações substanciais em algumas das soluções propostas.
É esse o texto que estará em análise e discussão neste importante Colóquio que conta com a participação de reputados civilistas dedicados a estas matérias em Portugal e em Espanha, incluindo alguns dos autores da última proposta de reforma do livro de Obrigações do Código Civil Espanhol.
Não tendo acompanhado, nem sendo um conhecedor minimamente atento dos trabalhos desta Comissão, e tendo apenas passado os olhos pelo texto da sua mais recente Proposta, vou aproveitar o honroso convite que me foi dirigido para participar na abertura deste Colóquio para alinhavar algumas ideias sobre a conveniência de uma reforma do congénere Código Civil Português.
Digo conveniência e não necessidade, porque conforme se referiu na exposição de motivos da primeira proposta da Comissão Geral de Codificação Espanhola é sem dúvida exagerado falar em necessidade de reforma da lei civil e muito menos apelidá-la de perentória, mas já a sua conveniência é inquestionável.
Não é a primeira vez que sinalizo esta minha preocupação, tendo-a exprimido desde logo no discurso da minha tomada de posse, apesar de então ter referido que, para não perturbar o que era urgente e prioritário, na altura, nada acrescentaria sobre a necessidade de uma reforma do nosso quase sexagenário Código Civil, apesar deste se revelar cada vez mais desfasado das novas realidades sociais e económicas
Esta minha preocupação foi ganhando corpo com as dificuldades surgidas na minha tarefa diária de juiz, vinculado a aplicar as disposições contidas naquele diploma de forma a encontrar um desfecho justo para os litígios concretos e reais que me eram colocados nos tribunais por onde fui passando.
Em muitas situações, revelava-se que as soluções consagradas no nosso Código já não refletiam os sentimentos, nem os interesses prevalecentes da comunidade, e que, a cada dia, surgiam novas problemáticas e realidades que o legislador de 1966 não tinha antecipado.
Estas dificuldades exigiam o recurso a uma atividade interpretativa e integradora criativa, em que era necessário moldar o conteúdo das regras positivadas, preencher os vazios normativos e adaptar as leis existentes a novas realidades.
Perante este desafiante papel, imposto pelas necessidades de um Estado de Direito surpreendido por um novo mundo e paralisado pelas sucessivas crises que o vão debilitando, não foi possível escapar a um certo ativismo judiciário.
Foi fazendo algum sentido o entendimento que verdadeiramente as leis são feitas pelos homens que as estudam, interpretam e aplicam.
Não subscrevo, contudo, a opinião de que, assim sendo, com o atual Código Civil têm sido resolvidos, sem dramáticos sobressaltos, os conflitos surgidos nas relações que aquele diploma regula, pelo que, no futuro, essa aparente operacionalidade não deixaria de perpetuar-se.
Esta perspetiva, na lógica futebolística de que em equipa que ganha não se mexe, serve para justificar a inação a que vimos assistindo.
Um anterior Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a propósito do cinquentenário do Código Civil, talvez preocupado em não desgostar o aniversariante num dia festivo, descreveu assim esta visão branqueadora sobre a vida do Código Civil espelhada nas sentenças judiciais:
A jurisprudência revela dia a dia as novas exigências da sociedade; descobre fórmulas que verdadeiramente constituem fonte de direito; e faz viver com o impulso criador e imaginante da advocacia e o acompanhamento construtivo e o conforto da doutrina, a ideia da perfeição sonhada no movimento codificador.
A jurisprudência tem feito viver o Código Civil, lendo-o nas circunstâncias relativamente mutáveis, ambientais, culturais e sociológicas da sua aplicação.
Esta descrição benévola e idílica não retrata, porém, a real situação da vida atribulada do nosso Código Civil nos tribunais.
Por um lado, ele já está muito longe de realizar a finalidade codificadora, uma vez que fora dele tem-se expandido um mundo legislativo esparso que não para de aumentar, com uma crescente intervenção internacional, sobretudo europeia, podendo dizer-se que, atualmente, o Código Civil é tão somente a estrela maior de uma enorme constelação legislativa civilista.
Por outro lado, a rigidez natural de alguns regimes, como sucede, por exemplo, com a sucessão legitimária ou com os prazos de prescrição, impede que a genialidade do intérprete consiga ultrapassar o seu flagrante desfasamento com a realidade social, encontrando-se muitos deles já no limbo da inconstitucionalidade.
E, finalmente, o papel da jurisprudência na atualização do Código Civil não é desempenhado de uma forma uniforme que garanta segurança e o mínimo de estabilidade às interpretações normativas avançadas.
Em muitas das situações em que a jurisprudência se aventura numa leitura atualizada do Código Civil fá-lo tardiamente, aos solavancos, com velocidades desencontradas, enredando-se em contradições internas e incorrendo em incoerências sistémicas.
Para que essa intervenção fosse mais eficaz era necessária a existência de um Supremo Tribunal de Justiça, na posição de terceira e última instância judicial, com uma composição mais restrita, exclusivamente dedicado à importantíssima tarefa de uniformização da jurisprudência, quer pondo termo a decisões díspares dos tribunais hierarquicamente inferiores, quer pronunciando-se em definitivo sobre os casos com uma excecional relevância jurídica ou social.
É certo que o Código Civil de 1966 é um jovem sexagenário comparado com o Código Civil Espanhol de 1889.
É também certo que se trata de uma obra maduramente pensada e refletida durante vinte e dois longos anos, no tempo em que as horas demoravam a passar, e que acolheu muitas das melhores doutrinas que na altura ainda não tinham sequer obtido consagração legislativa nos ordenamentos jurídicos europeus, sendo, entre nós, quase unanimemente considerada a maior realização da Ciência Jurídica Portuguesa.
No entanto, não podemos ignorar que, após a Europa ter vivido entre guerras, na primeira metade do século XX, foi sobretudo nestes últimos 60 anos que quase tudo mudou nas nossas vidas. Primeiro num ciclo de prosperidade económica e já no século XXI ultrapassando crises financeiras, sanitárias e políticas.
Essas mudanças sociais, económicas, culturais e tecnológicas, aliadas a uma intensa produção legislativa civilística dispersa, com significativa intervenção dos órgãos da União Europeia, não permitem que se continue a adiar uma reforma que se afigura inevitável, não sendo já suficiente correções pontuais.
Claro que há dúvidas sobre o modo de a efetuar.
Uma reforma global ou sectorial ?
Uma recodificação do direito civil ou uma nova codificação do direito privado ?
Uma reforma a preparar um futuro Código Civil Europeu, ou um Código Civil de direito português ?
A adoção de um sistema normativo aberto a ser preenchido pela jurisprudência com o apoio da doutrina, ou uma regulamentação minuciosa dos mais diversos institutos e figuras ?
Em 2003, o Ministério da Justiça, através de um protocolo celebrado com as principais Faculdades de Direito promoveu uma iniciativa inédita de promoção de estudos no sentido de aferir a necessidade ou conveniência em alterar o Código Civil e diplomas conexos, lançando as bases de uma discussão sobre uma possível reforma do direito civil português, através da entrega de um caderno de encargos.
Foram apresentadas três justificações para esta ideia:
A primeira consistia no desconforto em ver o Código Civil sucessivamente esvaziado por diplomas extravagantes, muitas vezes pela necessidade de transpor diretivas comunitárias, cuja urgência no procedimento não se compadecia com uma intervenção cirúrgica no Código Civil.
A segunda residia na consciência que, embora constituísse uma peça magistral da ciência jurídica civilística, o Código Civil estava envelhecido.
A última visava prevenir a possibilidade, que na altura se colocava, de Portugal poder influenciar a construção de um código europeu em construção, devendo, para isso, repensar as soluções do seu próprio Código Civil.
As Faculdades de Direito corresponderam a este repto, cumprindo o caderno de encargos através da elaboração de curtos relatórios preliminares, em que manifestaram unanimemente a opinião de que era conveniente proceder a uma reforma do Código Civil e a sua disponibilidade de nela participarem.
Contudo, essa iniciativa esgotou-se com o seu lançamento e dela apenas restaram esses breves relatórios e um livro do Professor Menezes Cordeiro em que reuniu vários escritos que na altura dedicou à necessidade de modernização do Direito Civil, como condição para a sua sobrevivência.
A ausência de um mínimo de interesse político nessa reforma ditou a sua morte à nascença e a mesma ausência explica que dela nunca mais se tenha falado nos 20 anos seguintes.
É uma reforma com objetivos tão diferenciados que não é suscetível de ser apreendida pela opinião pública, não tem repercussões imediatas nem no PIB nem no saldo das contas públicas, não gera qualquer curiosidade mediática e a sua concretização exige um período de tempo que não permite a quem a inicie exibir o seu resultado final.
Pensando lucidamente, o Código Civil de 1966 só foi possível porque Vaz Serra e Antunes Varela, dois Professores de Direito Civil, foram Ministros da Justiça entre 1940 e 1944 (o primeiro), quando se iniciaram os trabalhos preparatórios daquele diploma, e entre 1954 e 1967 (o segundo) quando se concluíram esses trabalhos e foi aprovado o Código Civil.
Sendo difícil a repetição desta feliz coincidência, não se vislumbra, pois, que essa seja uma reforma que esteja no horizonte próximo do poder político.
Esta visão realista não deve, no entanto, afastar deste propósito reformista aqueles que lidam diariamente com este ramo do direito, investigando-o, ensinando-o ou aplicando-o, sendo seu dever alertar e influenciar os detentores do poder legislativo para que se inicie com urgência um processo de revisão que se prevê longo.
O Supremo Tribunal de Justiça, pelas especiais responsabilidades que sobre ele incidem, estará sempre disponível para participar, colaborar e até promover todas as iniciativas que visem este importante objetivo.
Muito obrigado pela vossa atenção.
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