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Intervenção do Presidente do STJ no X Encontro Anual do Conselho Superior da Magistratura (Penafiel, 6 de Novembro de 2015)

06 Nov 2015

O X Encontro Anual do CSM tem lugar num momento determinante para o futuro da Justiça em Portugal, passado o primeiro ano de execução da LOSJ.

Foi um ano em que ficámos no epicentro, e por vezes sós, na concretização de um novo mapa judiciário, sem o tempo adequado de preparação da execução, e com o sentimento de que nos foi imposta a proibição de insucesso.

Ficou sobre nós a obrigação de termos bem presente que o País não pode «jogar» o «jogo» das chamadas reformas da justiça.

Por isso, independentemente do julgamento político sobre os méritos da LOSJ, que não é nem pode ser o nosso espaço de discussão, devemos compreender as dinâmicas com espírito de missão e com independência e disponibilidade ao serviço dos cidadãos, e defender as condições da função de julgar, assumindo as nossas responsabilidades no cumprimento do dever, e assim separar deficiências estruturais que não sejam nossas.

2. A racionalização do funcionamento dos sistemas de justiça depende da adequação de um modelo de organização que permita responder às necessidades dos cidadãos e das empresas, à natureza das condições da geografia, às alterações demográficas e consequências nas relações sociais e no tecido económico.
As modificações sociais, económicas e culturais, que se sucederam a ritmo inesperado para muitos, impõem a adaptação das estruturas organizativas das funções essenciais do Estado, de modo a corresponder às expectativas e aos direitos dos cidadãos, e a criação de condições que permitam o funcionamento eficaz da sociedade organizada em Estado.

A reorganização do sistema de justiça com que somos confrontados, exige de todos, na condição deste tempo que vivemos, abertura a outras perspectivas e o encontro de novos caminhos.

Na nova concepção de organização da justiça, a eficiência, a eficácia e a qualidade têm sido insistentemente afirmadas como prioridades, que devem ser proporcionadas por ganhos decorrentes de novos critérios de administração e gestão.

No entanto, a aparente simplicidade do enunciado, que se apresenta como uma consequência natural e imediata do desenho de um modelo, parece abstrair dos condicionamentos impostos pela natureza da actividade judicial, em que a eficiência, certamente valor muito relevante, não poderá ser escolhido para ocupar o lugar central.

A boa administração da justiça constitui um valor constitucional, mas a centralidade da eficiência presente no enunciado das finalidades suscita várias interrogações e dificuldades, condicionadas também pela ambiguidade de algumas noções e conceitos.

Mas o modo de enunciação das finalidades, reduzindo, mais implícita que explicitamente, a eficiência aos tempos de resolução e à produtividade, apela a conceitos importados, referidos no seu campo matricial à comparação entre previsões, objectivos e resultados, em função, sobretudo ou exclusivamente da produtividade em sinonímia de «celeridade».

A eficiência e a eficácia, as cadências dos fluxos processuais e a produtividade no domínio da actividade judiciária, não podem deixar de constituir noções autónomas.

Os «conceitos nómadas», como a eficiência, eficácia e produtividade, se forem considerados numa lógica empresarial de onde são importados, não são prestáveis para a definição dos princípios que devem enquadrar as práticas na administração da justiça.

Na actividade judicial, as categorias impostas por razões da economia não podem ser o alfa e ómega da acção, nem centradas em critérios de produtividade que sejam essencialmente quantitativos, devendo ser consideradas apenas como meios para realizar as missões da justiça.

A interpretação do modelo da LOSJ e os termos da sua execução passam necessariamente pela afirmação e interiorização de uma cultura de missão, com definição autónoma de uma estratégia do sistema judicial.

A estratégia do sistema judicial ou, no rigor, os «objectivos estratégicos» na que expressão que a lei usa, constitui o fundamento da acção que tem de ser identificada com a construção da qualidade da justiça.

A qualidade, que é do domínio da substância, não constitui uma noção parcelar e redutora, mas o resultado de uma agregação complexa de factores, avaliados por um feixe de elementos que integram o quadro conceptual sedimentado do processo equitativo.

Por isso, no acompanhamento da execução e do desenvolvimento do novo modelo, e na necessária dissecação de conceitos geneticamente ambíguos, como «objectivos estratégicos», «objectivos processuais» ou «indicadores de medida», as noções têm de ser redefinidas, evitando concessões a ideologias subliminares de «parametrização», poupando a justiça ao risco da transposição dos modelos de gestão empresarial.

A atenção a experiências comparadas pode aqui revelar-se de muita utilidade, não apenas pelo lado positivo, mas também nas dificuldades e em tudo o que eventualmente tenha sido menos conseguido.

Há que ter presente uma prevenção fundamental; existem sempre questões éticas na esfera, que é autónoma, do modo de julgar e de «produzir» decisões, que sendo imperativos da natureza da função, não podem ser desconsiderados.

Não podemos esquecer que a justiça introduz distância e tempo; impõe o tempo necessário para a reflexão e para a ponderação em sociedades tomadas pela tirania da urgência e pelo turbilhão de emoções.

A justiça tem os seus próprios ritmos, regras e exigências; não pode ser colonizada por valores sectoriais, técnicas, imposições, finalidades, ou até a inspiração do modelo managerial das empresas.

3. Na intenção política afirmada como fundamento, a LOSJ pretendeu criar condições para uma boa organização da justiça, no pressuposto de que uma boa organização, para além da eficiência, garantirá também a independência do juiz, e no fim, a qualidade da justiça.

As estruturas de gestão que a lei instituiu nas novas comarcas, com outra escala de território, das competências e da dimensão das unidades de apoio, têm a plasticidade que permite a adaptação às circunstâncias, muito embora possa ser previsível que as assimetrias entre circunscrições aconselhem algum ajustamento na organização humana e material de apoio à gestão nas comarcas de maior dimensão.

Mas a relação, a um tempo de proximidade, de necessária separação e de complementaridade entre a gestão do tribunal, a gestão processual e a actividade de juiz, sugere algumas reflexões, que vão ser certamente partilhadas no desenvolvimento dos temas deste X Encontro.

A cultura judicial foi sempre muito marcada por uma concepção individualista da organização do trabalho, que se considerava como pressuposto, e sobretudo atributo, da independência.

Nas culturas funcionais da tradição judicial revelam-se, subconscientes, tendências para pensar a relação como ligação pessoal e imediata ao lugar ocupado pelo juiz.

Esta atitude cultural, que é também de outras jurisdições, tem sido adensada por alterações processuais e de competências, com a intervenção cada vez mais acentuada do juiz único em detrimento da colegialidade.

Este caminho apresenta, permitam-me a nota, imensos riscos.

Podemos interrogar-nos sobre se o «individualismo» no exercício da função – o «isolamento esplêndido», numa expressão por vezes usada que vem carregada de ironia – não transporta em si uma limitação pela perda da visão de conjunto e pelo enfraquecimento das referências, com efeitos no prestígio e na credibilidade da instituição.

O isolamento aumenta o risco de incoerência que decorra do desconhecimento recíproco das decisões de outros juízes da mesma jurisdição, e favorece a criação de rotinas profissionais de feição individual que podem causar perturbação no funcionamento da organização.

A concepção isolacionista é inteiramente ilusória, e não constitui nem factor nem garante da independência.

O juiz fica mais liberto para julgar com independência se não tiver de se preocupar com matérias de gestão e de disponibilização dos meios de que necessita, nem com as condições materiais e logísticas para a realização de actos judiciais, programados de acordo com critérios de eficiência, e em co-participação dos juízes.

4. Sabemos que as transições, por regra, implicam sempre um tempo acentuado de adaptação, alteração de hábitos consolidados e verificação da utilidade dos métodos instituídos e tratados em organização.

As mudanças metodológicas devem ser acompanhadas pelo amadurecimento e interiorização do benefício dos resultados, prevenindo as dificuldades e as reacções ou sentimentos de oposição, hostilidade, demissão, evitamento ou mesmo conflito e manifestação de suspeita sistemática.

Por isso, a capacidade para compreender, a adaptação de atitudes, a sabedoria e a prudência na procura de soluções partilhadas, são essenciais para interpretar e aceitar a interacção – e a separação – que a lei propõe entre a gestão e actividade estritamente judicial.

Na visão de conjunto que os temas do X Encontro nos propõem, a dimensão, os limites e a coordenação das diversas competências que interagem na gestão das comarcas, constituem, como a experiência tem revelado neste ano de vigência, o nó górdio do projecto do modelo da LOSJ e o fecho da abóbada da construção.

A natureza das atribuições e competências do CSM e dos presidentes das comarcas, e os procedimentos para o seu exercício, permitem qualificar a natureza administrativa das relações entre os órgãos no âmbito dos poderes de superintendência, apesar de plurifacetada no plano das classificações categoriais quanto à forma de exercício de poderes jurídico-administrativos.

Mas, para além do exercício formal, ou da forma do exercício, a relação deve ser de cooperação reforçada, que se materializará tanto ou mais por meios informais do que através dos procedimentos administrativos.

A execução da LOSJ revela aspectos sensíveis, que a experiência e o afinamento interpretativo permitirão colocar no seu verdadeiro lugar de discussão.

Temos a consciência que uma ou outra dificuldade pode existir na reconfiguração dos modos de ser culturais do exercício e da natureza das funções, condicionados, ou compreensivelmente induzidos, por pré-compreensões sedimentadas nos modelos de organização judiciária anteriores, sem verdadeira autonomia entre a gestão e a jurisdição.

É quase da natureza das coisas que a recomposição seja acompanhada por preocupações legítimas, motivadas pela passagem para outra escala da dimensão e de organização das novas comarcas.

Entre estas podem referir-se as dúvidas e – porque não – a inquietude que a (aparente) novidade do LOSJ sobre a fixação de objectivos estratégicos e processuais tem suscitado, agravadas também por percepções condicionadas nesta matéria por desvio acentuado do discurso político.

Permitam-me que vos expresse a minha sensibilidade e interpretação a este propósito.

Devo sublinhar bem um pressuposto: a definição de objectivos estratégicos e processuais é inerente a qualquer organização, e também, por isso, à administração em geral, e especificamente à administração da justiça.

Os objectivos respeitam, é certo, à definição dos meios e dos procedimentos adequados à obtenção de níveis positivos no desempenho e nos resultados, mensurados através de indicadores adaptados à administração da justiça; mas não poderão, contrariamente a algumas ideias, ser confundidos com uma dimensão estritamente processual de pendências e tempos de duração vistos através de leituras estatísticas.

Por outro lado – e esta precisão é essencial – não pode haver confusão, identificação ou relação directa entre objectivos e avaliação de desempenho individual.

A definição e a verificação dos níveis de cumprimento de objectivos tem como finalidade sentir os níveis de eficiência da organização enquanto tal, e não a avaliação individual dos juízes.

A avaliação individual terá lugar nos mesmos termos em que sempre ocorreu; a fixação de objectivos não tem como finalidade a avaliação individual de cada juiz, devendo bem salientar que os juízes sempre trabalharam com os seus objectivos processuais próprios.

Neste aspecto, temos, porventura, que pensar e reflectir sobre os modos que permitam conciliar melhor a nova organização com outro modelo de avaliação, mais contemporâneo do desempenho, mais justo e equitativo, de modo a encontrar o maior denominador comum na realização da justiça relativa.

Este projecto está em curso.

A proximidade, a continuidade e a contemporaneidade, bem como a implicação e co-responsabilização dos juízes na sua própria auto-avaliação, constituem ideias a trabalhar, para encontrar alternativas a um modelo de avaliação que muitos pensam estar esgotado.

5. Dando continuidade temática ao IX Encontro, reunimo-nos com o propósito de pensar as condições da execução do mapa judiciário, e encontrar os caminhos que devemos caminhar, com a lição tirada do que percorremos, mas com a abertura intelectual para um pequeno esforço de adaptação das culturas, colocando os princípios no preciso lugar da sua essência, e assim eliminando um ou outro equívoco de menor consistência construído sobre a nossa circunstância.

Faço votos de bom trabalho e do êxito do Encontro.

Penafiel, 6 de Novembro de 2015

(António Henriques Gaspar)

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