O presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) criticou hoje o poder legislativo que, desde o veto presidencial de 2019, não apresentou qualquer proposta de alteração à lei de tratamento de dados judiciais, que apelidou de “peça de museu”.
O juiz conselheiro João Cura Mariano, que falava na abertura da sessão organizada pelo STJ para assinalar o Dia da Proteção de Dados, recordou que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, vetou uma proposta de alteração à lei de tratamento de dados no sistema judicial por considerar esta “previa inadmissíveis compressões do poder judicial” e que, passados mais de cinco anos, “em mais uma demonstração da inércia do poder legislativo, não foi apresentada na AR qualquer proposta de alteração que suprisse as deficiências apontadas no veto presidencial”.
Sofia Wengorovius, juíza de direito e encarregada da proteção de dados do Conselho Superior da Magistratura (CSM), foi uma das convidadas da mesa-redonda organizada pelo STJ subordinada ao tema “6 anos de RGPD – Balanço da (des)aplicação da lei nacional de execução e da lei sobre o tratamento de dados no Sistema Judicial”. Envolvida no processo de implementação do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) nos tribunais desde o início, Sofia Wengorovius fez um balanço dos últimos seis anos, dos desafios que foram colocados aos tribunais e disse também não entender porque não foram superadas as razões do veto à lei de tratamento de dados judiciais. “Parecia relativamente simples”, disse.
Recordou que foi formado um grupo de trabalho no CSM para elaborar uma proposta de alteração ao regime jurídico. O plenário do CSM aprovou essa proposta em 2023 e a mesma foi entregue ao legislador, mas nada aconteceu. Recorde-se que o regime jurídico nacional que continua a aguardar revisão é anterior ao RGPD, um regulamento europeu de transposição obrigatória para o direito nacional, e que, por isso, está naturalmente desatualizado.
Na sessão de hoje no STJ, à qual assistiram o procurador-geral da República, a bastonária da Ordem dos Advogados e o presidente do Tribunal de Contas, participou também a presidente da Comissão Nacional da Proteção de Dados (CNPD). Paula Meira Lourenço abordou os desafios da CNPD enquanto autoridade de supervisão e referiu que “ao fim de 6 anos, as entidades responsáveis pela proteção de dados já perceberam que é importante investir em medidas preventivas”. Referiu ainda que a equipa de 29 pessoas precisa ser rejuvenescida e que está em elaboração uma proposta de alteração legislativa para permitir novos estatutos, que permitam, nomeadamente, “aumentar eficácia da ação sancionatória”.
A presidente da Associação dos Profissionais de Proteção de Dados (APDPO) referiu que os encarregados de proteção de dados em Portugal já são uma realidade na vida das entidades – dos 5 mil que existem, 1000 trabalham no sector público. Inês Oliveira, que é também Encarregada da Proteção de Dados da Autoridade Tributária, disse que estes profissionais sentem insegurança diária na aplicação do regulamento e desafiou a CNPD a publicar as deliberações em que há coimas e o valor das mesmas. “A perceção que existe é de alguma impunidade, não há sanções, não há coimas”.
Para a diretora-geral da Política da Justiça, apesar dos desafios, “o regulamento é, no essencial, um sucesso”. Susana Videira defendeu, no entanto, que é fundamental continuar a trabalhar para dar a conhecer o regulamento e sensibilizar as pessoas para a importância do RGPD. “Não podemos exercer os nossos direitos se não soubermos que estes direitos existem”. Referiu que são apresentadas mais de 100 000 reclamações por ano perante as autoridades europeias e que já se verifica um “efeito Bruxelas”, sendo que o regulamento europeu é “a” norma para a proteção de dados um pouco por todo o mundo.
Na segunda parte da sessão – moderada pelo encarregado da proteção de dados do STJ, João Ferreira Pinto – Gabriela Cunha Rodrigues, desembargadora e chefe de gabinete do presidente do STJ deu alguns exemplos da jurisprudência proferida pelos tribunais superiores (STJ, Constitucional e tribunais da Relação) no ano que passou no âmbito da proteção de dados e privacidade. Essa jurisprudência pode ser consultada aqui.
O último orador foi o juiz conselheiro do STJ, José Luís Lopes da Mota, que se debruçou sobre as perspetivas futuras no tratamento e proteção de dados no sistema judicial. “Passei 45 anos a tratar dados pessoais… As coisas complicaram-se com o aparecimento de novas tecnologias, os dados ficaram sujeitos a riscos maiores e mais complicados”, disse o conselheiro, que tem no direito da proteção de dados pessoais na área penal uma das suas principais áreas de conhecimento e experiência.