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Comunicações do Presidente

Abertura do Ano Judicial 2025

13 Jan 2025

A Lei da Organização do Sistema Judiciário, no seu artigo 27.º, prevê, sem cominatório, que a abertura do ano judicial, que corresponde ao ano civil, seja assinalada pela realização de uma sessão solene no Supremo Tribunal de Justiça.

É uma cerimónia oficial que, com maior ou menor espetacularidade, acontece, por todo o mundo, em muitos e diversos sistemas judiciais nacionais e nos tribunais internacionais.

Entre nós, a sua consagração legal remonta a 1987 e retomou uma prática que, por estranha coincidência, se verificou durante os anos da II Guerra Mundial.

É um ritual público que, no palco deste salão nobre, simboliza a interdependência e o diálogo entre os diferentes poderes de um Estado de Direito

Com um protocolo sóbrio, apesar de não existir uma vinculação temática, é habitual cada um dos representantes dos diferentes órgãos de soberania e instituições fazer um balanço do funcionamento do sistema de justiça do ano que findou e projetar o futuro no ano que se inicia.

Apesar de me atrair a diferença, para minha própria orientação, sinto necessidade de nesta ocasião, após já terem decorrido sete meses de um mandato inesperado, registar o caminho percorrido e dar nota das minhas preocupações para o futuro.

Quando tomei posse a 4 de junho do ano que terminou, assumi as funções como Presidente deste Tribunal, num tempo em que a justiça, mais uma vez, estava na crista da onda discursiva, sob o signo da crise e da desconfiança e a sua reforma era um desígnio nacional prioritário.

Mas como sucede com qualquer onda, a sua duração foi momentânea e rapidamente se quebrou e se desfez na espuma dos dias.

São, assim, os nossos tempos, em que a voragem dos acontecimentos, numa escolha sem critério, sem que objetivamente nada mude, substitui prioridades quase diariamente.

Indiferente ao grau da sua importância, mergulham-se no esquecimento realidades problemáticas que permanecem por resolver.

Cumpre-me, por isso, relembrar que no sistema de justiça, após um longo período de inação, há uma extensa reforma por fazer.

Uma reforma que deve ser feita de múltiplas e nevrálgicas alterações legislativas sectoriais, a qual deve iniciar uma nova era caraterizada por um reformismo permanente, na tentativa de acompanhar uma realidade em rápida e constante mutação.

Quando tomei posse, coloquei uma pulseira vermelha naqueles problemas que exigiam um atendimento imediato.

– A alteração do regime de ingresso nas magistraturas.

– O regime de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.

– E as revisões dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil.

O que é que, entretanto, aconteceu?

Num diálogo franco e profícuo com a Senhora Ministra da Justiça, cuja permanente disponibilidade para encontrar soluções para os problemas que afetam o sistema de justiça me cumpre aqui assinalar, rapidamente se convergiu nas medidas a adotar para estas urgências.

A eliminação dos anacronismos do regime legal do concurso de ingresso nas magistraturas, responsável em grande medida por uma preocupante escassez de candidatos, deveria inspirar-se num Anteprojeto aprovado, por consenso, no Conselho Geral do Centro de Estudos Judiciários.

O ingresso de juízes no Supremo Tribunal de Justiça, com uma idade distante da sua reforma, seria alcançado através de uma minúscula alteração ao Estatuto dos Magistrados Judiciais, por mim proposta, que alarga o leque dos juízes candidatos oriundos das Relações ao concurso de acesso a este Tribunal.

E, finalmente, deveriam ser constituídas duas comissões revisoras das leis processuais com o encargo de as modernizar, prevendo novas realidades e conferindo-lhes o equilíbrio e a maleabilidade necessária a uma hábil conciliação entre celeridade e garantias de defesa.

O que foi feito sete meses decorridos?

Quanto ao regime de ingresso nas Magistraturas, o Governo, em 7 de novembro, apresentou na Assembleia da República uma Proposta de Lei que adota a quase totalidade das soluções propostas pelo Conselho Geral do Centro de Estudos Judiciários, a qual foi aprovada por unanimidade, em 20 de dezembro, pelo Plenário da Assembleia da República, tendo baixado à 1.ª Comissão para ser discutida na especialidade.

Na opinião pública já foi aclarada uma dúvida inicial quanto às alterações avançadas, e que havia resultado de um equívoco ocorrido aquando do anúncio público daquela Proposta Legislativa.

Na verdade, continua a ser exigida aos candidatos a sua aprovação na parte escolar do Mestrado, garantindo o grau de exigência necessário ao acesso às magistraturas.

Da discussão na generalidade, no Parlamento, resultaram, porém, algumas dúvidas sobre a eliminação da prova escrita de Desenvolvimento de Temas Culturais Sociais ou Económicos.

Não foi por acaso que no Conselho Geral do Centro de Estudos Judiciários, órgão onde se sentam representantes das diferentes magistraturas, da Ordem dos Advogados, da Academia, do poder executivo e do poder legislativo, se consensualizou que as finalidades visadas com essa prova deveriam ser alcançadas por outra via.

Estamos perante uma prova escrita em que o subjetivismo, inevitavelmente inerente à sua correção por variadas personalidades, com diferentes sensibilidades, é causadora de graves distorções na graduação dos candidatos, conduzindo, pela sua aleatoriedade, não raras vezes, ao afastamento cego de alguns dos concorrentes mais qualificados.

É perfeitamente possível, na bateria de provas orais às mais diversas matérias jurídicas a que os candidatos são sujeitos, perante um júri plural, com uma maior objetividade, apurar o conhecimento e a visão que os candidatos têm do mundo que existe fora dos códigos e dos manuais e das problemáticas da vida em sociedade, uma vez que é a essas realidades que o direito se dirige e aplica.

Talvez se justificasse, sim, aditar à Proposta de Lei em discussão, uma dispensa dos exames escritos, dos alunos que obtiverem, em cada universidade, as mais altas notas na licenciatura e no mestrado, mantendo-se, contudo, a sua sujeição às provas orais.

Era uma forma de atrair para a magistratura os alunos que, potencialmente, reúnem as melhores condições para o exercício de funções de tamanha responsabilidade, permitindo as provas orais despistar os casos em que esses indícios de aptidão não se confirmassem.

É, contudo, necessário que esta lei seja rapidamente aprovada, uma vez que um novo concurso de acesso às magistraturas deveria ter o seu início no mês de janeiro em curso.

Quanto à minúscula alteração aos Estatutos dos Magistrados Judiciais, tão necessária a inverter o ciclo de progressivo envelhecimento dos quadros do Supremo Tribunal de Justiça, ainda não entrou sequer no Parlamento qualquer iniciativa legislativa, sem que eu consiga descortinar uma explicação para tal atraso, face à gravidade da situação.

Relativamente às revisões gerais das leis do processo, só no passado mês de dezembro foi anunciada pelo Governo que em breve seria nomeada uma comissão revisora do Código de Processo Penal, aguardando-se que, simultaneamente, seja igualmente constituída uma outra comissão para a revisão do Código de Processo Civil, até porque este tem uma aplicação subsidiária ao processo penal.

Estando muitos dos entraves processuais já identificados e muitas das soluções para os resolver debatidas, sem que se perceba por que é que o nascimento destas comissões demorou,  até hoje, sete meses, espera-se que os trabalhos das mesmas decorram com a brevidade desejável e que até ao final do ano seja possível dispormos de regras que permitam uma tramitação ágil dos processos judiciais.

Relembra-se que nelas terá de ser repensado o papel e as competências do Supremo Tribunal de Justiça na hierarquia dos tribunais judiciais.

Há que, finalmente, seguir o exemplo dos Supremos Tribunais dos demais países europeus e até do Supremo Tribunal Administrativo em Portugal, atribuindo ao Supremo Tribunal de Justiça as únicas tarefas que justificam a intervenção de uma terceira e última instância na hierarquia dos tribunais judiciais.

O que dizer, pois, do atendimento prestado às patologias urgentes, sinalizadas com pulseira vermelha.

Os diagnósticos são acertados, os planos de tratamento são adequados, mas a prestação dos cuidados necessários tem tardado sem que se perceba a demora.

Encontramo-nos agora, escusadamente, numa corrida contra o tempo, para conseguirmos iniciar, embora já fora de horas, os concursos de acesso à Magistratura e ao Supremo Tribunal de Justiça com as desejadas novas regras que se espera irem resolver as disfunções existentes nestas áreas.

Se o tempo da justiça é muitas vezes acusado de se caraterizar por uma lentidão exasperante, o que dizer do tempo da feitura das leis.

É urgente repensar os procedimentos legislativos governamentais e parlamentares de modo a permitir que, sem prescindir da necessária reflexão e discussão e sem diminuição da qualidade do resultado, as leis consigam acompanhar as constantes alterações das realidades que visam regular, sob pena de se comprometer a realização eficaz de um Estado de Direito.

Mas também é necessário refletir sobre o tipo de leis adequado a estes novos tempos.

Face às novas possibilidades tecnológicas, a arrumação das leis em Códigos estanques ainda será a melhor maneira de proporcionar o conhecimento da legislação?

As leis deverão ser minuciosas, tudo querendo prever e regular, muito ao estilo alemão e com forte influência no direito da união europeia?

Ou deverão antes limitar-se a enunciar princípios, soluções gerais e linhas diretrizes, deixando para aqueles que as aplicam a sua adaptação às novas situações que constantemente a vida em sociedade vai colocando?

Estas são questões que devem começar a fazer parte da ordem do dia e a Teoria da Legislação e a Legística são ramos de uma ciência cujo desenvolvimento irá desempenhar um papel relevante na necessária modernização do Estado de Direito.

Revisto o semestre passado, importa agora projetar o ano que se inicia.

O exercício da Presidência do Conselho Superior de Magistratura trouxe-me o conhecimento e a identificação de outros problemas que afetam gravemente o sistema judiciário que quero aqui dar nota em curtos flashes e que serão objeto das minhas preocupações futuras.

As deficiências no funcionamento dos tribunais na 1.ª instância, com significativos atrasos no cumprimento dos despachos dos juízes, adiamentos e constrangimentos nas marcações e realizações das audiências de julgamento, reside, sobretudo, na escassez, descontentamento e desmotivação dos funcionários judiciais.

A definição e a melhoria das condições do seu estatuto profissional são um problema que, incrivelmente, se arrasta desde há alguns anos, sendo urgente a sua rápida resolução, de modo a termos um corpo de funcionários adequado às necessidades e empenhado no cumprimento das suas relevantes funções.

Está previsto que nos próximos 6 anos se reformem cerca de 600 juízes.

Atualmente, o número de juízes existentes já não é sequer suficiente para preencher os quadros existentes, sendo o drama dos tribunais sem juízes, por ora, solucionado através de um indesejável regime de acumulação de funções de grande exigência para quem se disponibiliza a trabalhar para além do serviço que lhe está distribuído.

É, por isso, necessário que nos próximos anos se reponha o número de juízes que se vão reformando, o que só se conseguirá com o ingresso e uma formação, de cerca de uma centena de novos juízes por ano, o que traz exigências acrescidas para o Centro de Estudos Judiciários, que deve ser prevenida com a dotação dos meios necessários para tal empreendimento.

A criação de um verdadeiro serviço de assessoria, apontado há tanto tempo como uma das soluções para o bom funcionamento dos tribunais e que é uma realidade em quase todos os sistemas de justiça europeus continua sem ver a luz do dia.

Uma lei que há 25 anos atribuiu autonomia administrativa aos tribunais da Relação encontra-se ainda por regulamentar, apesar do legislador ter concedido um generoso, mas inocente, prazo de 120 dias para esse efeito.

Uma outra lei que definia o regime jurídico do tratamento dos dados referentes ao sistema judicial, aprovada em junho de 2019, por unanimidade, na Assembleia da República e que o Senhor Presidente da República, justificadamente vetou, por ela se revelar, num particular aspeto, desconforme com o Regulamento Europeu de Proteção de Dados, nunca mais regressou ao Parlamento, apesar de já terem decorrido mais de 5 anos.

E, finalmente, que é feito da tantas vezes prometida e jurada autonomia financeira dos tribunais, peça imprescindível de uma verdadeira independência do poder judicial?

São estas as principais enfermidades do sistema judiciário a necessitar de atendimento prioritário este ano e para os quais me mantenho disposto a colaborar ativamente na sua resolução.

A sua permanência tão prolongada no tempo suscita-me inquietantes interrogações.

Como é possível tamanha inércia política?

Como é possível este desinteresse pelas condições de exercício da função judicial?

Como é possível tudo isto acontecer, ou melhor, nada acontecer?

O sábio Gandalf, personagem do Senhor dos Anéis, lembrava que não nos é dado escolher o tempo em que vivemos, mas apenas o que fazer com os tempos em que nos foi dado viver.

É consciente desta evidência que, apesar de todas as incertezas e perigos com que se inicia o ano de 2025, tenho a esperança de que, num permanente diálogo e cooperação que esta cerimónia simboliza, em conjunto, iremos saber o que fazer no tempo em que nos foi dado agir.

Pode ser que hoje, nesta cerimónia, se acenda uma luz.

Que este ano judicial nos traga boas surpresas, são os meus votos.

 

Lisboa, 13 de janeiro de 2025

João Cura Mariano, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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