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Palestra X Conferência do Fórum dos Presidentes dos Supremos Tribunais de Justiça dos Países e Territórios da Língua Portuguesa

06 Dez 2022

 

O tema deste X Conferência do Fórum dos Presidentes dos Supremos Tribunais de Justiça dos Países e Territórios de Língua Portuguesa é o princípio da separação de poderes e a independência dos tribunais.

Aristóteles, Locke e Montesquieu trabalharam a teoria da separação de poderes em diferentes contextos históricos e inspiraram o modelo atualmente vigente em vários Estados constitucionais.

O filósofo grego foi o primeiro a analisar o Estado numa perspetiva de multiplicidade de poderes, desenhando, ainda que de forma rudimentar, o modo como estes se deveriam organizar.

 

Locke, no século VXII, aperfeiçoou o modelo, atribuindo supremacia ao poder legislativo, mas criando limites à sua atuação.

Este filósofo inglês não autonomizou o poder judicial, atribuindo a execução das leis ao poder executivo.

Seria só com Montesquieu que essa autonomização se viria a concretizar.

Na sua obra “O Espírito das Leis”, Montesquieu defendeu que o poder judicial devia ter independência orgânica e pessoal em relação aos outros poderes, embora, na sua construção dogmática, a atuação do poder judicial ficasse limitada a uma rigorosa vinculação à lei, transformando os juízes em meros pronunciadores desta.

Conseguiu que esta sua visão sobre a organização dos poderes do Estado fosse acolhida na assembleia nacional francesa de 1789, que a consagrou no artigo 16º da declaração dos direitos do homem e do cidadão, com a seguinte redação:
A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.

Esta declaração serviu de preâmbulo à primeira Constituição Francesa, de 1791, que, no seu capítulo V, dedicado ao Poder Judiciário, estabeleceu, entre o mais, que em caso algum o poder judiciário poderia ser exercido pelo Corpo Legislativo ou pelo Rei.

 

A teoria da separação de poderes foi evoluindo e está hoje consagrada, como disse, na ordem jurídico-constitucional dos modernos Estados democráticos.

Vou reproduzir, de seguida, os cinco principais artigos da Constituição da República Portuguesa sobre esta matéria:

O artigo 2º da Constituição sob a epígrafe ‘Estado de Direito Democrático’, consigna:
A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.

O n.º 1 do artigo 110º enuncia como órgãos de soberania o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais.

Por sua vez, o n.º 1 do artigo 111º refere:
Os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição.

E o artigo 202º dispõe:
1. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo.
2. Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.

Finalmente, o artigo 203º declara que:
Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.

Temos, assim, que na Constituição da República Portuguesa, o princípio da separação e interdependência de poderes assume-se como eixo fundamental do Estado de Direito Democrático, ocupando um papel primordial na Organização do Poder Político.

Como salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira , não se trata da divisão do poder soberano, que radica exclusivamente no povo, mas da separação das funções do Estado e da sua ordenação e distribuição pelos vários órgãos de soberania integrados nesse Estado.

Com a repartição equilibrada dos poderes entre os diferentes órgãos é suposto que nenhum deles possa ultrapassar os limites estabelecidos pela Constituição sem ser contido pelos demais.

Foi o inglês Henry St. John, Visconde Bolingbroke, quem pela primeira vez falou do instituto dos pesos e contrapesos (checks and balances), na primeira metade do século XVIII, defendendo que para impedir a subversão de um poder por outro teria que se manter uma independência entre eles e atribuir a cada um dos poderes um meio de controle recíproco, de modo que, com isso e só assim, seria possível manter os órgãos constitucionais em equilíbrio.

Mas, como avisa Anne Applebaum , no seu ensaio “O Crepúsculo da Democracia”, ‘o sistema de pesos e contrapesos das democracias constitucionais ocidentais nunca garantiu estabilidade. As democracias liberais sempre exigiram dos seus cidadãos participação, discussão, esforço, luta’.

A função jurisdicional é, porém, um campo onde o princípio da separação de poderes tem plena expressão, sendo levada até às últimas consequências, sem sofrer qualquer derrogação . Ou seja, se é verdade que a interdependência de poderes está constitucionalmente prevista, ela tem o seu campo privilegiado e exclusivo de atuação no domínio dos poderes executivo e legislativo, esses sim interdependentes.

Tributário do princípio da separação de poderes e conatural ao Estado de Direito, a independência dos tribunais consagrada no artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa constitui a garantia, a condição e o meio indispensável para a realização do direito e da justiça.

Na independência dos tribunais está implícita a independência dos juízes, uma vez que são os juízes que neles administram a justiça.

Constituindo uma ‘garantia essencial da independência dos tribunais’, a independência dos juízes ‘está necessariamente abrangida pela proteção constitucional daquela’; por outras palavras, o princípio da independência dos tribunais ‘pressupõe necessariamente a independência dos juízes’ .

De acordo com o artigo 4º, n.º 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, a independência dos juízes manifesta-se na função de julgar, na direção da marcha do processo e na gestão dos processos que lhes forem aleatoriamente atribuídos.

Esta independência dos juízes analisa-se em duas vertentes: a externa e a interna.

Nos Estados de Direito democráticos a independência externa é assegurada por normas constitucionais em que se estabelecem as necessárias garantias orgânicas de não interferência na ação judicativa, de que decorre, designadamente, a não sujeição a ordens ou instruções das demais autoridades públicas.

Na extensão desta vertente da independência, os juízes devem também estar a coberto de quaisquer influências ou pressões por parte de outros poderes de facto, como partidos políticos, grupos económicos, lóbis, órgãos de comunicação social, etc.

A independência interna, isto é, a independência face ao próprio sistema em que o juiz se integra, sendo mais complexa, é garantida de diversas maneiras.

Desde logo, pela existência de um órgão privativo de gestão e disciplina, constitucionalmente autónomo, só em parte constituído por juízes (e sem que estes representem, por imperativo constitucional ou legal, a maioria). Refiro-me, é claro, ao Conselho Superior da Magistratura, ao qual compete, entre o mais, a nomeação, a colocação, a transferência e a promoção dos juízes, assim como o exercício da ação disciplinar em relação a eles.

O Conselho Superior da Magistratura é composto por 17 elementos: dois designados pelo Presidente da República, sete designados pela Assembleia da República e outros sete eleitos pelos juízes, sendo presidido, por inerência, pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

É o CSM que nomeia os juízes e também os presidentes das 23 comarcas do País.

 

A inamovibilidade do juiz, consagrada no artigo 216º da Constituição, constitui outra das garantias de independência.

Nenhum juiz pode ser transferido ou ver mudada a sua situação, a não ser que seja esse o seu desejo ou que essa transferência seja ditada em consequência de punição por falta grave apreciada em processo disciplinar.

A irresponsabilidade do juiz pelas suas decisões, prevista no mesmo artigo 216º, representa uma outra garantia de independência.

Embora não tendo caráter absoluto, na medida em que a Constituição apenas a consagra como princípio, a irresponsabilidade do juiz só em casos muito excecionais pode ser afastada.

Sendo a independência, externa e interna, condição essencial para a imparcialidade do juiz, esta só se completa com a observância de um conjunto de garantias processuais de que são exemplos os incidentes de escusa, recusa e impedimento do juiz, a plena fundamentação da decisão como fonte de legitimação do poder judicial, o cumprimento do princípio do contraditório, enfim, o tratamento igualitário das partes no processo.

A independência do juiz existe para garantir a sua imparcialidade e esta só é plenamente alcançável e percecionada pela comunidade mediante a observância de um conjunto de outras componentes de natureza estatutária, ética e deontológica que assegurem a imparcialidade do juiz face aos interesses em litígio.

O cumprimento escrupuloso dos deveres estatutários, de que assume particular relevo o dever de reserva, e o afastamento de comportamentos que do ponto de vista ético ou moral se afastem do sentimento dominante na sociedade é um desafio cada vez mais exigente considerando os sedutores apelos da moderna vida social.

É crucial para a perceção da imparcialidade do juiz que este modere a sua atuação social em resultado das restrições ao pleno exercício dos direitos fundamentais que lhe são estatutariamente impostas.

O juiz não deve envolver-se em disputas opinativas nas redes sociais; deve abster-se de comentar decisões judiciais e de participar em atividades políticas ou administrativas que impliquem subordinação a outros órgãos de soberania ou o estabelecimento de relações de confiança política; não deve intervir por qualquer forma na vida dos organismos desportivos; não deve integrar associações ou organizações que exijam aos aderentes a prestação de promessas de fidelidade ou que, pelo seu secretismo, não assegurem a plena
transparência sobre a participação dos associados.

Evidentemente que isto não significa que se exija ao juiz para ‘sair de si’, isto é, para que, ao decidir, anule a sua pessoa e apague as circunstâncias da sua vida. Não é isso. O que se lhe pede é que não deixe que a sua forma de estar e pensar a vida e o mundo, a sua ideologia, as suas convicções morais ou religiosas se sobreponham à lei e adulterem o processo decisório, sob pena de deslegitimação da sua atuação.

Algumas das recomendações a que fiz referência constam, aliás, do Compromisso Ético dos Juízes Portugueses elaborado em outubro de 2008, que constitui um importante guia ético-deontológico para todos os magistrados judiciais, e que serviu como pano de fundo para a “Carta de Porto Alegre”, assinada em 2018, onde se estabeleceram os princípios éticos dos juízes dos países de língua oficial portuguesa.

Excelências:

Portugal está prestes a celebrar 50 anos de democracia.

Nestas quase cinco décadas, Portugal conseguiu construir um modelo de separação de poderes que garante a independência dos tribunais e dos juízes, constituindo um bom exemplo na Europa

A Constituição da República, a Lei de Organização do Sistema Judiciário, o Estatuto dos Magistrados Judiciais e as leis do processo civil e processo penal estabelecem um quadro legal sólido que garante a independência de tribunais e juízes.

Este facto é extraordinariamente importante, na medida em que (como bem assinalava ontem a nossa Colega de Angola) o princípio da separação de poderes e a independência dos tribunais não se bastam com meras enunciações normativas nem com proclamações mais ou menos solenes dos responsáveis políticos.

As conclusões do mais recente relatório sobre o Estado Global das Democracias, relativo ao ano de 2021, do Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral (IDEA), divulgado na passada semana, não são nada animadoras.

Esse Instituto, com sede em Estocolmo, mede o desempenho democrático de 158 países e procura fornecer um diagnóstico sobre o estado das democracias em todo o mundo.

Segundo esse relatório, o mundo está a tornar-se mais autoritário e os governos democráticos estão a deteriorar-se, recorrendo a práticas repressivas e enfraquecendo o Estado de Direito.

O documento mostra ainda que o número de países em transição para o autoritarismo superou, em 2020, o número daqueles que estão a avançar em direção a uma democracia.

Mais de dois terços da população mundial vivem agora em democracias em regressão ou sob regimes autoritários e híbridos.

Na Europa, por exemplo quase metade de todas as democracias, num total de 17 países, sofreram erosão nos últimos cinco anos.

Os piores exemplos são a Hungria e a Polónia que, no que respeita aos tribunais e aos juízes, tomaram medidas absolutamente inaceitáveis na tentativa de condicionar a sua ação e que mereceram severa censura e repúdio por parte das instituições europeias.

Só democracias efetivas, que não meramente formais, podem garantir a separação de poderes e a independência dos tribunais, tão importantes para a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Apesar de o modelo português constituir um bom exemplo de independência dos tribunais e dos juízes no seio da Europa, há ainda aspetos a melhorar, pelos quais me tenho batido, nomeadamente: a transferência do domínio das plataformas de gestão e tramitação dos processos, passando da esfera do Ministério da Justiça para o Conselho Superior da Magistratura; a alteração do Estatuto dos Magistrados Judiciais que leve à limitação ou até supressão de comissões de serviço para cargos de natureza política; a criação das condições legais para que seja a Assembleia da República a apreciar a dotação orçamental para os tribunais sob proposta do Conselho Superior da Magistratura.

Como tive oportunidade de dizer no último encontro do CSM, realizado em Vila Nova de Gaia no passado mês de outubro, não faz qualquer sentido que seja o poder executivo a determinar quais as verbas destinadas aos tribunais, porque ao fazê-lo em medida inferior às necessidades do judiciário – como sempre acontece – acaba por condicionar a atuação deste.

Não é compreensível, por exemplo, que ainda não esteja consagrada em forma de lei a autonomia financeira do Supremo Tribunal de Justiça.

Excelências:
Caros Colegas:

Garantir a independência dos tribunais é uma tarefa que exige permanente atenção e vigilância.

Espero que neste conglomerado de Países irmãos de língua portuguesa os princípios do Estado de Direito democrático prevaleçam e que a independência dos tribunais se afirme como pilar fundamental da vida coletiva dos nossos povos.

São Tomé e Príncipe, 5 de dezembro de 2022

​Henrique Araújo, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

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