Tudo indica que, finalmente, dobrado mais de um ano, podemos voltar às nossas vidas.
Foram tempos difíceis os que atravessamos neste período em que o inesperado bateu à nossa porta.
A ciência protegeu-nos a tempo.
Evitaram-se maiores danos do que aqueles que a nossa impreparação inicial não pode atalhar.
Os limites da nossa resistência foram testados. A nossa inventividade desafiada.
Agora, precisamos de respirar, precisamos de espaço para distender as emoções, energias e sentimentos contidos, precisamos de olhar o futuro com esperança e determinação.
Beja é o local ideal para o reinício.
A tranquilidade e os horizontes largos da planície alentejana dão-nos a perspetiva exata da liberdade, do que há para cumprir e alcançar neste esforço conjunto de administrar a Justiça.
Excelências
Minhas Senhoras e Meus Senhores
A pandemia Covid 19 afetou todas as atividades da vida coletiva.
Umas mais do que outras.
Olhando em retrospetiva, pode afirmar-se que o setor da Justiça foi um dos que menos impactos negativos sofreram em termos de operacionalidade.
Rapidamente nos adaptamos à contrariedade. Respondemos com coragem e desenvoltura.
Com exceção do curto período em que a atividade dos tribunais ficou suspensa, efetuaram-se diligências e julgamentos, e proferiram-se decisões nas várias áreas jurisdicionais da 1ª instância. Nas Relações e no Supremo, a atividade foi ainda menos afetada, considerando a menor exposição a riscos de proximidade.
Durante todo esse tempo, a utilização das tecnologias que possibilitam a comunicação à distância foi determinante para o prosseguimento da atividade dos tribunais.
Passamos a usar as ferramentas informáticas de forma massiva. As plataformas audiovisuais Webex, Teams e Zoom entraram na nossa rotina diária.
Tudo isto foi positivo.
O sucesso foi tanto que são agora visíveis, aqui e ali, alguns sinais de resistência ao regresso à atividade dos tribunais na configuração anterior à pandemia.
Todavia, em meu simples entender, não podemos querer uma Justiça com tribunais transformados em locais ermos, ocupados por máquinas que se encarregam de trazer e fazer chegar aos destinatários as notícias sobre o desenvolvimento dos processos, com juízes e funcionários sistematicamente ligados a écrans nos mais diversos locais.
Toda a aprendizagem que alcançamos no tempo de pandemia será indiscutivelmente útil, mas não pode servir de pretexto para mudar radicalmente o modelo de funcionamento dos tribunais.
É nos tribunais, espaços físicos, que se faz a Justiça. É aí que os juízes exercem a função jurisdicional. É aí que se manifesta um dos poderes soberanos do Estado.
A presença do juiz no tribunal transmite confiança e segurança aos cidadãos através da perceção da autoridade que dele emana enquanto titular de um órgão de soberania.
No que diz respeito, em particular, às audiências de julgamento, não se descortina como é que a sua realização à distância pode dar cumprimento aos princípios da publicidade, da oralidade e da imediação. Sem a interação pessoal, direta e imediata dos vários intervenientes, própria da dinâmica do julgamento, é difícil atingir uma decisão justa e equitativa.
Se é verdade que não podem ser questionadas as vantagens da informatização e da digitalização dos processos, creio que o trabalho remoto e a virtualização de conferências e julgamentos não podem constituir a regra. Não só pelas razões apontadas, mas também porque daí derivaria perigo real de funcionalização da magistratura judicial.
A generalização da via virtual na atividade judiciária acabaria por dar força àqueles – felizmente poucos – que não desistem de ver definitivamente abolida a independência do poder judicial e dos tribunais.
Numa das conclusões do estudo realizado pelo Grupo de Reflexão constituído pelo Conselho Superior da Magistratura e pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses, subordinado ao tema “Trabalho à Distância e Exercício da Função Jurisdicional”, considerou-se que a possibilidade de tramitação processual à distância, não deverá significar uma total deslocalização física do Juiz da Casa da Justiça, mostrando-se o exercício pleno e em condições de normalidade da função jurisdicional incompatível com o regime exclusivo ou quase-exclusivo de teletrabalho.
Serão as circunstâncias de cada caso que vão enformar o juízo de oportunidade sobre a realização de diligências e audiências à distância. Sempre com balanceamento dos interesses em jogo. Sempre com equilíbrio e bom senso. Sempre como mera alternativa excecional.
Por outro lado, a aposta que tem vindo a ser feita nas tecnologias digitais deverá ser acompanhada da melhoria das condições físicas dos tribunais. Não é aceitável, ou melhor, parecerá contraditório, dispormos de tecnologias muito avançadas em tribunais degradados ou instalados em estruturas teimosamente provisórias, sem as mínimas condições de dignidade e conforto.
Por estas razões, o tema deste XV Encontro do CSM “A (Des) Humanização da Justiça – Tecnologia como meio e não como fim” é de ingente atualidade.
Nestes dois dias teremos oportunidade de refletir sobre as vantagens e desvantagens do uso das novas tecnologias nos tribunais e de apontar caminhos para uma Justiça que, não renegando a modernidade e o avanço tecnológico, se aproxime mais dos cidadãos em vez de se distanciar deles.
Nessa reflexão será também considerada a utilização pelo sistema judicial da inteligência artificial, nova ferramenta da revolução tecnológica e digital, cuja aplicação ao sistema judicial deve ser objeto de rigorosa apreciação.
Excelências
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Permitam-me agora que, em desvio do tema central deste Encontro, dedique brevíssimas palavras de reconhecimento e agradecimento.
Uma das competências do CSM é, como sabemos, agir no campo disciplinar, investigando e, se for caso disso, sancionando condutas de magistrados judiciais desrespeitadoras dos deveres funcionais a que estão adstritos.
Nessa tarefa, o CSM tem contado com a total disponibilidade de Juízes Conselheiros Jubilados que, prescindindo da tranquilidade do estatuto da jubilação, têm instruído processos de averiguações e disciplinares relacionados com situações funcionais complexas e de grande impacto público.
A todos esses Colegas quero deixar bem sublinhado, em nome do CSM, um profundo agradecimento e dirigir-lhes também o apelo para que continuem connosco na infindável tarefa de dignificação da Justiça portuguesa.
Antes de terminar, um outro agradecimento:
Ao Senhor Presidente da Câmara de Beja, Dr. Paulo Arsénio, pela forma generosa e simpática como acolheu este XV Encontro nesta admirável cidade de Beja, da qual Saramago disse ter de história que baste e sobeje.
Votos de bom trabalho.
Setúbal, 21 de outubro de 2021
Henrique Araújo, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
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