Em nome do Conselho Superior da Magistratura e como Presidente do Supremo Tribunal de Justiça é com um misto de satisfação e de esperança que dou as boas-vindas aos novos Juízes de Direito.
Este ato, com um significado particular, num momento também particular, marca o início de uma carreira que desejo auspiciosa.
O início de uma profissão é sempre um marco relevante na vida de qualquer pessoa. É-o ainda mais quando essa profissão representa a assunção de responsabilidades na titulação de um órgão de soberania.
Ao vosso apetrechamento técnico, à vossa cultura e às vossas circunstâncias acresce um desafio que não é um mero exercício de capacitação para o trabalho. É de realização pessoal e profissional ao serviço do Estado de Direito, da cidadania, da comunidade.
Ireis certamente confrontar-vos com dificuldades de vária ordem.
As sociedades de hoje estão acometidas por um relativismo que atinge todas as áreas do saber, desvaloriza a experiência como fonte de aprendizagem e produz um deslaçamento das comunidades, criando subculturas e contraculturas que procuram no efémero e circunstancial o sentido da vida e a resposta para os desígnios sociais.
O ataque à independência dos tribunais, de forma velada ou mais ostensiva, prosseguirá.
A pressão dos meios de comunicação social, os comentários dos fazedores de opinião, o uso massificado das redes sociais provocam inquietudes, mas não podem desviar-vos da dimensão ontológica que enforma o ato soberano de julgar.
Peço-vos que não se encastelem nos tribunais. Procurem percecionar a vivência, o sentimento, o pensar das comunidades. Só assim decidirão de forma justa e merecerão o reconhecimento, respeito e confiança dos cidadãos.
Exorto-vos, por isso, a aprofundar o espírito de missão e de responsabilidade, que não equivale à ideia de virtude pessoal, mas à pura aplicação do estatuto que vos é conferido.
Neste estatuto, estão certamente presentes valores como honestidade, integridade, independência, imparcialidade, competência, prudência, coragem cívica, reserva e capacidade de ouvir e compreender os destinatários da Justiça.
Senhoras e Senhores Juízes
Os tribunais devem estar presentes na vida coletiva como instrumento de regulação e pacificação.
Nos últimos tempos, o modo de funcionamento dos tribunais sofreu grandes alterações, em virtude da pandemia. A via digital impôs-se. Numa atitude de generosa plasticidade, realizaram-se reuniões, diligências, audiências e sessões online. Tudo para que o sistema não parasse, para que a tutela dos direitos e interesses dos cidadãos, das empresas, da coletividade, não ficasse bloqueada.
Será que esse modelo de funcionamento deverá manter-se no tempo pós-pandemia?
Não creio, nem desejo, que tal aconteça.
A Justiça tem de cumprir requisitos de visibilidade. É nos tribunais que se administra a Justiça. A presença do juiz nos tribunais é um elemento crucial, gerador de respeito, segurança e confiança dos cidadãos.
Não se podem, todavia, ignorar as vantagens das novas tecnologias e, em especial, dos meios de comunicação à distância, recentemente muito utilizados. Todas essas ferramentas devem ser usadas de acordo com as circunstâncias e as necessidades do momento, mas não devem substituir o modelo presencial.
Os sistemas de inteligência artificial também poderão ser úteis.
No Livro Branco sobre a inteligência artificial, a Comissão Europeia apontou a relevância «de soluções de IA para a aplicação da lei e o sistema judicial», notando que a ««IA pode desempenhar muitas funções que anteriormente só podiam ser desempenhadas por seres humanos».
A estrutura lógica das normas legais apresenta semelhanças com a linguagem informática.
Porém, em busca de novas soluções para a organização social e económica e na renovação do direito da família e das crianças, o legislador espraia-se em novas técnicas de redação das leis, utilizando cláusulas gerais e princípios jurídicos de grande indeterminação, como a boa-fé, a proporcionalidade, a confiança e o superior interesse.
A utilização de cláusulas gerais e conceitos indeterminados faz parte do pecúlio intelectual do legislador e da administração, de modo a sublinhar a sua inquietude com a justiça material e a refutação de modelos automatizados.
A consciência do juiz é chamada a desempenhar um papel crucial na solução dos problemas resultantes da complexidade das transformações das sociedades contemporâneas e das estruturas jurídicas correspondentes.
Está fora de questão a adoção de uma linguagem jurídica construída à imagem e semelhança das linguagens de programação informática.
À potencialidade totalitária do digital terá de responder-se com uma atitude de equilíbrio, discernindo criteriosamente o que cabe às máquinas e o que cabe ao julgador, em defesa dos direitos fundamentais, da ética e da compreensão da essência do justo.
Senhoras e Senhores Juízes
A Justiça portuguesa sofreu, recentemente, rudes golpes no seu prestígio.
É fundamental que se restaure a confiança dos cidadãos nos juízes e na Justiça.
Conto convosco para essa difícil e longa tarefa.
Termino com votos de felicidades pessoais e profissionais para todos os empossados, na certeza de que o vosso trabalho dignificará a Justiça portuguesa.
Lisboa, 03 de setembro de 2021
Henrique Araújo, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
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